"Certamente, quando estiverem lendo essa entrevista, espero que a gente já tenha se conhecido. Estou falando as palavras do Jorge (Furtado) sem parar", João Pedro Zappa.
Em janeiro de 2015
"Ela me perguntou quantas pessoas eu já vi morrer. Quantas pessoas você já viu morrer? Nenhuma, eu disse. Ela sorriu e disse eu vou ser a primeira. Eu disse vai. Ela disse boa sorte.
— Boa sorte.
E morreu. Os lábios dela continuavam vivos, vermelhos. Parecia que ela estava dormindo. Ela morreu e pronto. Era bom ficar olhando seu corpo, bonito. A enfermeira entrou, viu que ela tinha morrido e me disse para sair do quarto, chamou o médico, eu saí do quarto". O trecho do conto “Frontal com Fanta”, de Jorge Furtado, que faz parte da coletânea “Tarja Preta”, da editora Objetiva, que inspirou o filme "Boa Sorte" bem que poderia ser considerado um spoiller, mas não é. Porque todo mundo sabe que a heroína do longa-metragem irá morrer. Mas, antes disso, ela coloca um pouco de vida no personagem interpretado por João Pedro Zappa.
Ele, que interpreta um xará no filme, já atuou em seis longas- metragens - entre os quais se destacam "Disparos" (Juliana Reis), "Éden", (Bruno Safadi), "Mate-me Por Favor" (Anita Rocha da Silveira) e "Ressaca" (Bruno Viana), pelo qual ganhou o Prêmio de Melhor Ator no Festival Cine-Esquema-Novo em 2009. Participou também de doze curtas metragens. Protagonizou o curta "Os Mortos-Vivos" (Anita Rocha da Silveira), selecionado para a Quinzena de Realizadores do Festival de Cannes em 2012.
Recentemente, João Pedro integrou o elenco principal do seriado da TV Globo "A Segunda Dama" dirigido por Carlinhos Araújo e Wolf Maya, e está em cartaz com as peças "A Importância De Ser Perfeito" - premiada montagem da peça homônima de Oscar Wilde, dirigida por Daniel Herz - e "Pedro Malasarte e a Arara Gigante", que assim como “Boa Sorte”, tem texto assinado por Jorge Furtado.
Como você se envolveu com o projeto de “Boa Sorte”?
Aos poucos, um ator vai estabelecendo parcerias profissionais que acontecem naturalmente, pelas exigências da profissão, mesmo. Já conhecia Guilherme Gobbi, que fez a produção de elenco do “Boa Sorte”. Ele me chamou para fazer teste para o filme. Nós atores sempre precisamos fazer muitos testes, mas tem aquele momento em que você precisa aprender a relaxar, esquecer que é teste. Passei a encarar os testes como exercícios. Fiz o primeiro teste tranquilo, leve. Nessa ocasião fiquei sabendo por alto que a Deborah Secco também estava no filme, e achei legal. Mas quando soube que tinha sido selecionado para fazer o segundo teste, dessa vez com a Deborah, perdi a respiração. “Caramba, realmente existe uma possibilidade de eu pegar esse papel”. Por um lado, tinha confiança de que poderia fazer bem, por outro, caramba, que grande passo... Foi inevitável sentir medo.
Pelo menos você já tinha uma experiência razoável em cinema, em curtas e mesmo longas.
Gosto muito de cinema e adoro trabalhar com cinema. Enxergo minha carreira como ator no cinema. Acho que quis ser ator por causa dos filmes que via com meu pai quando era criança, eu gostava de me colocar na pele do personagem do filme. Mas o teatro é fundamental, é o artesanato do ator. Desde pequeno adorava as aulas de teatro na escola. Em 2002, com 13 anos, entrei para o Tablado. Aos 14, já tinha certeza absoluta de que queria ser ator. Fiquei nove anos no Tablado, uma escola que te proporciona uma formação completa, intuitiva. Lá, todos aprendem um pouco de tudo, passam por todas as etapas. Tem gente que entra no Tablado para ser ator e se descobre na iluminação, na direção, nos cenários, nos figurinos. Ainda estava no Tablado quando me indicaram para o curta “O Vampiro do Meio-dia”, da Anita Rocha da Silveira, com quem acabei estabelecendo uma parceria. Depois, fiz também o curta “Os Mortos-vivos”, que passou na Quinzena dos Realizadores de Cannes, e o primeiro longa-metragem dela (ainda inédito), “Mate-me Por Favor” (título provisório).
E como foi o segundo teste para o filme?
O primeiro foi tranquilo, mas o segundo, já com a possibilidade real de passar, me deixou bem nervoso. Foi um teste com a Deborah Secco, no apartamento da Carolina Jabor. Cheguei primeiro e fiquei esperando 15 minutos, que mais pareceram uma eternidade. Mas quando a Deborah chegou, ela me deu um abraço tão gostoso, tão genuíno, que me senti totalmente acolhido. O teste correu bem, e no fim ela sussurrou para mim: “Acho que vai ser você”. Desde esse primeiro abraço, nós nos entendemos muito bem. Aprendi muita coisa com a Deborah. É uma atriz de uma precisão técnica absurda. Ela não perde o foco, não perde uma continuidade, uma marca, e ao mesmo tempo se entrega para a personagem. Das nossas atrizes, entre as que eu conheci pelo menos, é uma das mais entregues.
Como você define seu personagem?
João tem 17 anos e é de uma família bem desestruturada. É um menino muito criativo, que começa a arrumar justificativas para sua invisibilidade social. E uma das justificativas mais criativas, que para ele vira uma verdade, é que ele acredita ficar invisível quando toma Frontal, o ansiolítico da mãe dele, misturado com Fanta Laranja. Quando ele começa a tomar essa combinação “mágica”, passa a fazer umas besteiras, até que culmina numa grande besteira: ele dá um soco numa mulher num supermercado. Aí, finalmente, os pais o enxergam, só que num contexto já totalmente fora do controle, e decidem interná-lo em uma clínica para dependentes químicos. Nessa clínica, ele conhece a Judite, que tem o dobro da idade dele. Eles são quase opostos complementares. Ela tem 34 anos, já experimentou de tudo na vida, já usou todos os tipos de drogas, contraiu HIV e agora está num estado irreversível. E é nesse contexto que se conhecem. Ele,começando a vida, entrando num lugar completamente inóspito, conhece aquela figura que se torna a única pessoa que o enxerga de verdade. Judite é uma mulher incrível. Ele não acredita como aquela mulher pode ter se interessando por ele, ao mesmo tempo ele curte isso, sente que é sincero e genuíno, e quando vê ele está totalmente enlaçado nessa história, ele não quer nem sair da clínica mais. O filme é a história desse grande encontro, dessas duas extremidades, dois mundos completamente diferentes que colidem de uma forma inesperada. É uma história de amor que ultrapassa fronteiras – de idade, personalidade, história. Outro termo que usamos muito para definir o momento desses dois personagens foi “rito de passagem”. João entra na clínica um menino e sai amadurecido. E para ela é o rito de passagem da morte, para uma outra dimensão, porque a Judite sabe que as coisas não acabam com a morte.
“Rito de passagem” define bem o que se dá a partir do encontro desses personagens. Como você se preparou para viver o João?
Carol Jabor me indicou dois livros para ler: “Indignação”, de Phillip Roth, e “O Primeiro Amor”, de Samuel Beckett. Depois, tivemos cinco semanas de preparação antes das filmagens, o que é uma dádiva no cinema. Primeiro, foram duas semanas com o Chico Accioly (que prefere ser chamado de “ensaiador” do que de preparador de elenco). Ficamos parados uns dez dias entre o Natal e o Ano Novo, e depois tivemos mais três semanas, dessa vez também com a preparação corporal da Daniela Visco. Os dois foram absolutamente fundamentais. O Chico dando toques preciosos de texto e interpretação, a Dani fazendo um trabalho de corpo que chamo de trabalho de corpo e de alma. Ela traz um trabalho para o ator que envolve os chacras e as diversas camadas de energia de nossos corpos. E, por fim, a Carolina, que sabia exatamente o que queria. Às vezes, aprontávamos uma cena com o Chico, mostrávamos para ela, mas não era exatamente o que ela tinha em mente. Aí ela dizia o que queria e voltávamos a trabalhar a cena. Foi um trabalho muito coletivo. Não posso dizer que compus o João sozinho. Se eu não tivesse sido tão amparado, não teria sido a mesma coisa. Foi um privilégio enorme passar por essas semanas de preparação com o olhar de três grandes profissionais.
No filme você contracena com Fernanda Montenegro, Cassia Kis Magro, Gisele Fróes e vários outros atores de peso.
Pois é, além de estar dividindo o protagonismo de uma história tão bonita, tão profunda, com uma grande atriz como a Deborah Secco, ainda teve esse elenco fenomenal. Para começar, dona Fernanda. Foi muito curioso. O primeiro dia de filmagem já foi com dona Fernanda! Os dois primeiros dias. Foi um bom rito de passagem para mim como ator, começar o filme mais importante da minha carreira com Fernanda Montenegro. Sabe quando você faz uma viagem e vive anos em meses? Acho que vivi anos em horas, nesses momentos em que pude observar como Fernanda se coloca em cena, como ela vai criando. É muito entusiasmante vê-la o tempo todo, o domínio que ela tem, e ao mesmo tempo ver que é uma atriz completamente humana. Ela não deixa de ser humana porque é grandiosa, pelo contrário: ela é tão grandiosa porque é muito humana. No segundo dia de filmagem, fomos praticamente só eu e ela. Ela conhecia a minha mãe (a jornalista Regina Zappa), então houve uma empatia grande. Cássia Kis, Enrique Diaz, Felipe Camargo, para mim sempre foram referências profissionais. E ainda contracenei com Mariana Lima, que faz uma pequena cena, mas uma das mais importantes para o meu personagem, porque é a cena que leva os pais do João a interna-lo na clínica. Posso falar sem problemas que a Mariana Lima é uma das minhas atrizes prediletas. Ela é de outro mundo, é uma deusa no palco. Então, imagina: Dona Fernanda, Mariana Lima, referência e musa, Enrique Diaz, que também sempre foi referência. E Cássia Kis Magro, Felipe Camargo, Gisele Fróes, todos muito brilhantes e todos muito únicos. Aquele time todo e eu ali com a responsabilidade de ser o protagonista da história. Tenho uma expectativa muito grande em torno desse filme, sem dúvida o trabalho mais importante que eu fiz. Sou muito grato.
E ainda tem o Pablo Sanábio, que faz o Felipe, amigo de João e Judite na clínica.
Pablo foi o grande alívio cômico do filme e para nós. Ele é genial. Tem um tempo perfeito comédia. E além de ser um grande ator, é também um produtor de teatro fenomenal, realiza peças excelentes, uma atrás da outra. Conheci Pablo durante os testes e foi um encontro ótimo, nos damos bem até hoje.
Como você vê os temas mais delicados do filme, como o uso de drogas e a incapacidade dos pais de João de se comunicarem com o filho?
“Boa Sorte” não é um filme de clínica, embora boa parte dele se passe em uma clínica de reabilitação. Não é um filme pesado, denso. Mesmo assim, traz à tona todas essas questões, algumas atemporais e outras muito atuais. A mãe de João tem uma relação mais afetuosa com seu aparelho celular do que com o próprio filho. A questão das drogas é sempre tratada de forma muito inteligente pelo roteiro do Jorge e do Pedro Furtado. Essas questões são pilares da história, mas não a essência, que é o amor entre João e Judite.
Houve alguma cena especialmente difícil de filmar?
Muitas foram difíceis, mas sabíamos que a cena da morte de Judite seria especialmente delicada. Por sorte, a equipe, àquela altura, já era uma família, e houve um esforço muito sensível para que tivéssemos todas as condições de fazer a cena. Colocamos a música que escutamos nos ensaios, tivemos todo o tempo necessário para nos concentrarmos.
O filme é inspirado em uma história do Jorge Furtado, que também assina o roteiro. E você fez uma peça escrita pelo Jorge, “Pedro Malazarte e a Arara Gigante”.
É engraçado, até esse momento, nunca encontrei o Jorge Furtado. Nunca nos falamos nem por telefone, embora alguns e-mails que ele tenha mandado tenham sido endereçados a todos os que estavam participando dessas obras. Nunca troquei uma palavra com ele, nunca o vi pessoalmente, mas, de fato, estamos criando uma espécie de parceria involuntária, espontânea, porque o Jorge fez o roteiro do filme e estou em cartaz com o “Pedro Malazarte e a Arara Gigante”, um texto para o teatro muito sagaz. Certamente, quando estiverem lendo essa entrevista, espero que a gente já tenha se conhecido. Estou falando as palavras do Jorge sem parar, o que é ótimo, porque ele escreve de uma forma muito legal. Já estou familiarizado com seus textos, consigo reconhecer a assinatura dele, o jeito que ele escreve.
Em janeiro de 2015
"Ela me perguntou quantas pessoas eu já vi morrer. Quantas pessoas você já viu morrer? Nenhuma, eu disse. Ela sorriu e disse eu vou ser a primeira. Eu disse vai. Ela disse boa sorte.
— Boa sorte.
E morreu. Os lábios dela continuavam vivos, vermelhos. Parecia que ela estava dormindo. Ela morreu e pronto. Era bom ficar olhando seu corpo, bonito. A enfermeira entrou, viu que ela tinha morrido e me disse para sair do quarto, chamou o médico, eu saí do quarto". O trecho do conto “Frontal com Fanta”, de Jorge Furtado, que faz parte da coletânea “Tarja Preta”, da editora Objetiva, que inspirou o filme "Boa Sorte" bem que poderia ser considerado um spoiller, mas não é. Porque todo mundo sabe que a heroína do longa-metragem irá morrer. Mas, antes disso, ela coloca um pouco de vida no personagem interpretado por João Pedro Zappa.
Ele, que interpreta um xará no filme, já atuou em seis longas- metragens - entre os quais se destacam "Disparos" (Juliana Reis), "Éden", (Bruno Safadi), "Mate-me Por Favor" (Anita Rocha da Silveira) e "Ressaca" (Bruno Viana), pelo qual ganhou o Prêmio de Melhor Ator no Festival Cine-Esquema-Novo em 2009. Participou também de doze curtas metragens. Protagonizou o curta "Os Mortos-Vivos" (Anita Rocha da Silveira), selecionado para a Quinzena de Realizadores do Festival de Cannes em 2012.
Recentemente, João Pedro integrou o elenco principal do seriado da TV Globo "A Segunda Dama" dirigido por Carlinhos Araújo e Wolf Maya, e está em cartaz com as peças "A Importância De Ser Perfeito" - premiada montagem da peça homônima de Oscar Wilde, dirigida por Daniel Herz - e "Pedro Malasarte e a Arara Gigante", que assim como “Boa Sorte”, tem texto assinado por Jorge Furtado.
Como você se envolveu com o projeto de “Boa Sorte”?
Aos poucos, um ator vai estabelecendo parcerias profissionais que acontecem naturalmente, pelas exigências da profissão, mesmo. Já conhecia Guilherme Gobbi, que fez a produção de elenco do “Boa Sorte”. Ele me chamou para fazer teste para o filme. Nós atores sempre precisamos fazer muitos testes, mas tem aquele momento em que você precisa aprender a relaxar, esquecer que é teste. Passei a encarar os testes como exercícios. Fiz o primeiro teste tranquilo, leve. Nessa ocasião fiquei sabendo por alto que a Deborah Secco também estava no filme, e achei legal. Mas quando soube que tinha sido selecionado para fazer o segundo teste, dessa vez com a Deborah, perdi a respiração. “Caramba, realmente existe uma possibilidade de eu pegar esse papel”. Por um lado, tinha confiança de que poderia fazer bem, por outro, caramba, que grande passo... Foi inevitável sentir medo.
Pelo menos você já tinha uma experiência razoável em cinema, em curtas e mesmo longas.
Gosto muito de cinema e adoro trabalhar com cinema. Enxergo minha carreira como ator no cinema. Acho que quis ser ator por causa dos filmes que via com meu pai quando era criança, eu gostava de me colocar na pele do personagem do filme. Mas o teatro é fundamental, é o artesanato do ator. Desde pequeno adorava as aulas de teatro na escola. Em 2002, com 13 anos, entrei para o Tablado. Aos 14, já tinha certeza absoluta de que queria ser ator. Fiquei nove anos no Tablado, uma escola que te proporciona uma formação completa, intuitiva. Lá, todos aprendem um pouco de tudo, passam por todas as etapas. Tem gente que entra no Tablado para ser ator e se descobre na iluminação, na direção, nos cenários, nos figurinos. Ainda estava no Tablado quando me indicaram para o curta “O Vampiro do Meio-dia”, da Anita Rocha da Silveira, com quem acabei estabelecendo uma parceria. Depois, fiz também o curta “Os Mortos-vivos”, que passou na Quinzena dos Realizadores de Cannes, e o primeiro longa-metragem dela (ainda inédito), “Mate-me Por Favor” (título provisório).
E como foi o segundo teste para o filme?
O primeiro foi tranquilo, mas o segundo, já com a possibilidade real de passar, me deixou bem nervoso. Foi um teste com a Deborah Secco, no apartamento da Carolina Jabor. Cheguei primeiro e fiquei esperando 15 minutos, que mais pareceram uma eternidade. Mas quando a Deborah chegou, ela me deu um abraço tão gostoso, tão genuíno, que me senti totalmente acolhido. O teste correu bem, e no fim ela sussurrou para mim: “Acho que vai ser você”. Desde esse primeiro abraço, nós nos entendemos muito bem. Aprendi muita coisa com a Deborah. É uma atriz de uma precisão técnica absurda. Ela não perde o foco, não perde uma continuidade, uma marca, e ao mesmo tempo se entrega para a personagem. Das nossas atrizes, entre as que eu conheci pelo menos, é uma das mais entregues.
Como você define seu personagem?
João tem 17 anos e é de uma família bem desestruturada. É um menino muito criativo, que começa a arrumar justificativas para sua invisibilidade social. E uma das justificativas mais criativas, que para ele vira uma verdade, é que ele acredita ficar invisível quando toma Frontal, o ansiolítico da mãe dele, misturado com Fanta Laranja. Quando ele começa a tomar essa combinação “mágica”, passa a fazer umas besteiras, até que culmina numa grande besteira: ele dá um soco numa mulher num supermercado. Aí, finalmente, os pais o enxergam, só que num contexto já totalmente fora do controle, e decidem interná-lo em uma clínica para dependentes químicos. Nessa clínica, ele conhece a Judite, que tem o dobro da idade dele. Eles são quase opostos complementares. Ela tem 34 anos, já experimentou de tudo na vida, já usou todos os tipos de drogas, contraiu HIV e agora está num estado irreversível. E é nesse contexto que se conhecem. Ele,começando a vida, entrando num lugar completamente inóspito, conhece aquela figura que se torna a única pessoa que o enxerga de verdade. Judite é uma mulher incrível. Ele não acredita como aquela mulher pode ter se interessando por ele, ao mesmo tempo ele curte isso, sente que é sincero e genuíno, e quando vê ele está totalmente enlaçado nessa história, ele não quer nem sair da clínica mais. O filme é a história desse grande encontro, dessas duas extremidades, dois mundos completamente diferentes que colidem de uma forma inesperada. É uma história de amor que ultrapassa fronteiras – de idade, personalidade, história. Outro termo que usamos muito para definir o momento desses dois personagens foi “rito de passagem”. João entra na clínica um menino e sai amadurecido. E para ela é o rito de passagem da morte, para uma outra dimensão, porque a Judite sabe que as coisas não acabam com a morte.
“Rito de passagem” define bem o que se dá a partir do encontro desses personagens. Como você se preparou para viver o João?
Carol Jabor me indicou dois livros para ler: “Indignação”, de Phillip Roth, e “O Primeiro Amor”, de Samuel Beckett. Depois, tivemos cinco semanas de preparação antes das filmagens, o que é uma dádiva no cinema. Primeiro, foram duas semanas com o Chico Accioly (que prefere ser chamado de “ensaiador” do que de preparador de elenco). Ficamos parados uns dez dias entre o Natal e o Ano Novo, e depois tivemos mais três semanas, dessa vez também com a preparação corporal da Daniela Visco. Os dois foram absolutamente fundamentais. O Chico dando toques preciosos de texto e interpretação, a Dani fazendo um trabalho de corpo que chamo de trabalho de corpo e de alma. Ela traz um trabalho para o ator que envolve os chacras e as diversas camadas de energia de nossos corpos. E, por fim, a Carolina, que sabia exatamente o que queria. Às vezes, aprontávamos uma cena com o Chico, mostrávamos para ela, mas não era exatamente o que ela tinha em mente. Aí ela dizia o que queria e voltávamos a trabalhar a cena. Foi um trabalho muito coletivo. Não posso dizer que compus o João sozinho. Se eu não tivesse sido tão amparado, não teria sido a mesma coisa. Foi um privilégio enorme passar por essas semanas de preparação com o olhar de três grandes profissionais.
No filme você contracena com Fernanda Montenegro, Cassia Kis Magro, Gisele Fróes e vários outros atores de peso.
Pois é, além de estar dividindo o protagonismo de uma história tão bonita, tão profunda, com uma grande atriz como a Deborah Secco, ainda teve esse elenco fenomenal. Para começar, dona Fernanda. Foi muito curioso. O primeiro dia de filmagem já foi com dona Fernanda! Os dois primeiros dias. Foi um bom rito de passagem para mim como ator, começar o filme mais importante da minha carreira com Fernanda Montenegro. Sabe quando você faz uma viagem e vive anos em meses? Acho que vivi anos em horas, nesses momentos em que pude observar como Fernanda se coloca em cena, como ela vai criando. É muito entusiasmante vê-la o tempo todo, o domínio que ela tem, e ao mesmo tempo ver que é uma atriz completamente humana. Ela não deixa de ser humana porque é grandiosa, pelo contrário: ela é tão grandiosa porque é muito humana. No segundo dia de filmagem, fomos praticamente só eu e ela. Ela conhecia a minha mãe (a jornalista Regina Zappa), então houve uma empatia grande. Cássia Kis, Enrique Diaz, Felipe Camargo, para mim sempre foram referências profissionais. E ainda contracenei com Mariana Lima, que faz uma pequena cena, mas uma das mais importantes para o meu personagem, porque é a cena que leva os pais do João a interna-lo na clínica. Posso falar sem problemas que a Mariana Lima é uma das minhas atrizes prediletas. Ela é de outro mundo, é uma deusa no palco. Então, imagina: Dona Fernanda, Mariana Lima, referência e musa, Enrique Diaz, que também sempre foi referência. E Cássia Kis Magro, Felipe Camargo, Gisele Fróes, todos muito brilhantes e todos muito únicos. Aquele time todo e eu ali com a responsabilidade de ser o protagonista da história. Tenho uma expectativa muito grande em torno desse filme, sem dúvida o trabalho mais importante que eu fiz. Sou muito grato.
E ainda tem o Pablo Sanábio, que faz o Felipe, amigo de João e Judite na clínica.
Pablo foi o grande alívio cômico do filme e para nós. Ele é genial. Tem um tempo perfeito comédia. E além de ser um grande ator, é também um produtor de teatro fenomenal, realiza peças excelentes, uma atrás da outra. Conheci Pablo durante os testes e foi um encontro ótimo, nos damos bem até hoje.
Como você vê os temas mais delicados do filme, como o uso de drogas e a incapacidade dos pais de João de se comunicarem com o filho?
“Boa Sorte” não é um filme de clínica, embora boa parte dele se passe em uma clínica de reabilitação. Não é um filme pesado, denso. Mesmo assim, traz à tona todas essas questões, algumas atemporais e outras muito atuais. A mãe de João tem uma relação mais afetuosa com seu aparelho celular do que com o próprio filho. A questão das drogas é sempre tratada de forma muito inteligente pelo roteiro do Jorge e do Pedro Furtado. Essas questões são pilares da história, mas não a essência, que é o amor entre João e Judite.
Houve alguma cena especialmente difícil de filmar?
Muitas foram difíceis, mas sabíamos que a cena da morte de Judite seria especialmente delicada. Por sorte, a equipe, àquela altura, já era uma família, e houve um esforço muito sensível para que tivéssemos todas as condições de fazer a cena. Colocamos a música que escutamos nos ensaios, tivemos todo o tempo necessário para nos concentrarmos.
O filme é inspirado em uma história do Jorge Furtado, que também assina o roteiro. E você fez uma peça escrita pelo Jorge, “Pedro Malazarte e a Arara Gigante”.
É engraçado, até esse momento, nunca encontrei o Jorge Furtado. Nunca nos falamos nem por telefone, embora alguns e-mails que ele tenha mandado tenham sido endereçados a todos os que estavam participando dessas obras. Nunca troquei uma palavra com ele, nunca o vi pessoalmente, mas, de fato, estamos criando uma espécie de parceria involuntária, espontânea, porque o Jorge fez o roteiro do filme e estou em cartaz com o “Pedro Malazarte e a Arara Gigante”, um texto para o teatro muito sagaz. Certamente, quando estiverem lendo essa entrevista, espero que a gente já tenha se conhecido. Estou falando as palavras do Jorge sem parar, o que é ótimo, porque ele escreve de uma forma muito legal. Já estou familiarizado com seus textos, consigo reconhecer a assinatura dele, o jeito que ele escreve.
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