Por: Aline Alves da Silva e Mary Ellen Farias dos Santos*
Em janeiro de 2014*
dedicatória
– a uma devagarosa mulher de onde surgem os dedos, dez e queimados por uma forte delicadeza. Atrás, o monumento do seu vestido ocidental – erguido e curvo. E o vestido trabalhava desde o fundo e de dentro – como uma raiz branca – para o aparecimento da cabeça. A paisagem posterior é de livros, todos eles de costas voltadas, dominados pelas ardentes pancadas das suas letras. Algures vai passar a lua cavalgando a luz de um só lado, impressamente no papel redondo do céu. Os peixes são também números e tremem de subtileza à volta do lugar ameaçado. E o pescoço da mulher é uma letra de catedral, a letra de um alfabeto morto que um dia se encontrará noutro planeta – arcaica e reinventada. As letras evaporam-se intimamente: são magnólias. E aí está essa mulher que se move na paisagem escorregadia – rodeada por casas arrancadas pela raiz, voltadas no ar. Penso muito em todas essas letras simplesmente pousadas no A da sua cor vermelha, tal como a maçã que se põe – quieta e morosa – sobre o quanto vai ser de madura, e isso vindo da sua obscuridade, da sua salva infância de maçã. E a mulher enche-se de folhas para a sua maçã. E ocupamo-nos novamente na bela insensatez. Como o alfabeto. A lua cavalga a grandeza da mulher, as letras aparecem impressas no muro desse vestido branco ocidental, letras como estátuas de animais. A mulher vai ter uma cabeça de cão aberta em basalto – os cabelos lavrados no osso como as linhas numa página. E a cabeça de cão sorri implantadamente no alfabeto, apoiada no ocidente do vestido. E é um livro.
Herberto Helder
(suspiro)
Analisar o texto “Dedicatória” de Herberto Helder requer certa maturidade literária e um aprofundamento por parte do leitor, tendo em vista que este é o produto final do trabalho de um escritor muito rico estilisticamente. A seleção rigorosa dos recursos estilísticos deste autor português instiga o leitor a uma pesquisa interpretativa para a compreensão da teia de ideias lançadas por ele.
Por meio de esclarecimentos prestados pela professora Sylvia Maria C.R.H. de Bittencourt, durante as aulas de estudos estilísticos, constatamos que “Dedicatória” pode ser classificado como uma alegoria fechada, pois apresenta imagens sequenciadas. Neste texto há uma associação de ideias, ou seja, uma coerência que leva o leitor a uma chave interpretativa.
Na análise semântica notamos que há palavras que pertencem a apenas um, a dois e até, simultaneamente, aos três grupos semânticos estabelecidos em nossa leitura. No decorrer do texto o autor envolve o leitor nos campos semânticos: escrita/livro, paisagem/natureza e mulher, que por vezes se misturam, não deixando claro do que trata o texto, até que, no final, tenhamos descoberto a chave interpretativa que é o LIVRO.
Numa primeira leitura, as ideias estão aparentemente desconectadas. Entretanto, isso tem um fim com a leitura da chave interpretativa, quando o autor acende uma luz que convida o leitor a (re)ler e a (re)interpretar o texto, que se torna, repentinamente, uma dança sincronizada e extremamente harmônica, transformando várias ideias em uma só. Esta é a grande revelação que faz com o que leitor note a transparência constante do autor e, só então, encontre o fio interpretativo, presente da primeira à última linha.
* Texto originalmente escrito em 1 de outubro de 2010
* Mary Ellen é editora do site cultural www.resenhando.com. É jornalista, professora e roteirista. Twitter: @maryellenfsm
Em janeiro de 2014*
dedicatória
– a uma devagarosa mulher de onde surgem os dedos, dez e queimados por uma forte delicadeza. Atrás, o monumento do seu vestido ocidental – erguido e curvo. E o vestido trabalhava desde o fundo e de dentro – como uma raiz branca – para o aparecimento da cabeça. A paisagem posterior é de livros, todos eles de costas voltadas, dominados pelas ardentes pancadas das suas letras. Algures vai passar a lua cavalgando a luz de um só lado, impressamente no papel redondo do céu. Os peixes são também números e tremem de subtileza à volta do lugar ameaçado. E o pescoço da mulher é uma letra de catedral, a letra de um alfabeto morto que um dia se encontrará noutro planeta – arcaica e reinventada. As letras evaporam-se intimamente: são magnólias. E aí está essa mulher que se move na paisagem escorregadia – rodeada por casas arrancadas pela raiz, voltadas no ar. Penso muito em todas essas letras simplesmente pousadas no A da sua cor vermelha, tal como a maçã que se põe – quieta e morosa – sobre o quanto vai ser de madura, e isso vindo da sua obscuridade, da sua salva infância de maçã. E a mulher enche-se de folhas para a sua maçã. E ocupamo-nos novamente na bela insensatez. Como o alfabeto. A lua cavalga a grandeza da mulher, as letras aparecem impressas no muro desse vestido branco ocidental, letras como estátuas de animais. A mulher vai ter uma cabeça de cão aberta em basalto – os cabelos lavrados no osso como as linhas numa página. E a cabeça de cão sorri implantadamente no alfabeto, apoiada no ocidente do vestido. E é um livro.
Herberto Helder
(suspiro)
Analisar o texto “Dedicatória” de Herberto Helder requer certa maturidade literária e um aprofundamento por parte do leitor, tendo em vista que este é o produto final do trabalho de um escritor muito rico estilisticamente. A seleção rigorosa dos recursos estilísticos deste autor português instiga o leitor a uma pesquisa interpretativa para a compreensão da teia de ideias lançadas por ele.
Por meio de esclarecimentos prestados pela professora Sylvia Maria C.R.H. de Bittencourt, durante as aulas de estudos estilísticos, constatamos que “Dedicatória” pode ser classificado como uma alegoria fechada, pois apresenta imagens sequenciadas. Neste texto há uma associação de ideias, ou seja, uma coerência que leva o leitor a uma chave interpretativa.
Na análise semântica notamos que há palavras que pertencem a apenas um, a dois e até, simultaneamente, aos três grupos semânticos estabelecidos em nossa leitura. No decorrer do texto o autor envolve o leitor nos campos semânticos: escrita/livro, paisagem/natureza e mulher, que por vezes se misturam, não deixando claro do que trata o texto, até que, no final, tenhamos descoberto a chave interpretativa que é o LIVRO.
Numa primeira leitura, as ideias estão aparentemente desconectadas. Entretanto, isso tem um fim com a leitura da chave interpretativa, quando o autor acende uma luz que convida o leitor a (re)ler e a (re)interpretar o texto, que se torna, repentinamente, uma dança sincronizada e extremamente harmônica, transformando várias ideias em uma só. Esta é a grande revelação que faz com o que leitor note a transparência constante do autor e, só então, encontre o fio interpretativo, presente da primeira à última linha.
* Texto originalmente escrito em 1 de outubro de 2010
* Mary Ellen é editora do site cultural www.resenhando.com. É jornalista, professora e roteirista. Twitter: @maryellenfsm
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