quarta-feira, 28 de janeiro de 2015

.: Reflexão em crônica: Entre a lousa e o tablete

Por: Jacinto Flecha*
Em janeiro de 2015  
                  
                       
Apesar das dificuldades, bons tempos eram aqueles!...
(Lá vem esse saudosista, com seus elogios ao passado).
Saudosista, eu!? Ora, caro leitor, não seja tão apressado. Não consta na minha biografia ter sido contemporâneo nem admirador de Tutancâmon, simplesmente sou do tempo em que se aprendia com dificuldade – mas se aprendia de fato – garatujando sobre uma lousa. Talvez lhe pareça estranho alguém guardar boas lembranças de uma aprendizagem difícil. Mas se você tem a vã esperança de um filho seu aprender com facilidade alguma coisa útil, batucando ao acaso em um celular ou num brinquedinho chamado tablete, meu comentário de hoje lhe será ainda mais proveitoso.

Peço-lhe um pouco de paciência, se você é da terceira idade ou talvez da segunda, pois acabo de perceber a necessidade de explicar o que era um instrumento de ensino chamado lousa, desconhecido para leitores que nunca sofreram com aquela chapa retangular de pedra preta, emoldurada em madeira; com aquele estilete para riscar a pedra preta e reproduzir em traços brancos o que começávamos a conhecer como alfabeto; com aquele ruído irritante que provocava gastura; com um trabalhoso escreve-apaga-reescreve, até que a professora se desse por satisfeita.

Quem vê um estudante de hoje retirando da mochila um tablete (eu me recuso a suprimir o último e), pode até confundi-lo com uma lousa, cujo tamanho, forma e aparência eram aproximadamente os mesmos. Notável é a desproporção dos preços de um e outro, mas você pode encontrar diferenças até maiores, caso queira responder a este pergunta: Qual dos dois instrumentos é mais útil para quem quer aprender?

Não pense que vou aceitar candidamente a primeira resposta simplista que a propaganda lhe sugere. Até eu sei que o tablete contém muito mais informações úteis e inúteis (principalmente estas), tudo bem arranjadinho, ao alcance da pressão de um dedo. São coisas que os outros aprenderam e puseram no tablete, mas minha atenção e minha pergunta estão voltadas a saber qual dos dois instrumentos deixa mais conhecimentos na cabeça de uma criança em idade escolar.

Fala-se muito hoje em analfabetos funcionais, pessoas que aprenderam mas não sabem. Surgiram depois que o ensino se modernizou, e proliferam assustadoramente. Essa sincronia me lembra um adágio latino bastante incisivo: Post hoc, ergo propter hoc. Não traduzo, mas explico: Antes do tablete e seus similares não havia analfabetos funcionais; ora, esses instrumentos têm tudo para provocar esse resultado; logo, o tal analfabetismo é provocado por eles. Avaliando os efeitos da televisão, tablete e outros brinquedinhos sobre o desenvolvimento infantil, uma reportagem recente afirma: Os médicos dizem que nem sempre o uso da tecnologia é completamente condenável. Trocando em miúdos: O uso da tecnologia é completamente condenável, e só se deve admitir muito excepcionalmente. A reportagem não poderia ser mais restritiva ao uso dessas tecnologias. E muito eloquente também, não lhe parece?

Sem a menor sombra de dúvida, o sistema errar-corrigir-aprender é mais eficiente, produz resultados mais duradouros, ensina mais. Se um analfabeto aperta no tablete um botão ou ícone para a letra A, surge uma letra A pronta, certinha, bonitinha. Porém, se um analfabeto tenta copiar no papel essa letra A, fica evidente a necessidade de errar e corrigir, até registrar no papel uma imagem aceitável. Responda agora quem aprendeu de fato: o do tablete ou o do papel?

Um amigo com vários livros publicados me confidenciou que precisa “brigar com o texto” a fim de entendê-lo bem. E eu completo essa afirmação, revelando que leio-corrijo-releio-corrijo inúmeras vezes cada texto de minha autoria. Quantas vezes? Nunca contei, mas certamente são bem mais de vinte.
Esta minha informação sugere uma pergunta: É necessário tudo isso, para relatar coisas simples e evidentes como as desta crônica? Respondo que é necessário isso, e até muito mais, se desejo que meu leitor de fato entenda o que vou transmitir-lhe. O motivo é que conceitos, ideias, informações só se tornam simples e claros em textos submetidos a minucioso trabalho de análise, revisão e correção. O esforço que dedico a torná-los claros para o leitor acaba tornando-os mais claros também para mim. Posso afirmar, portanto, que eu também aprendo enquanto escrevo. Só considero definitivo o texto cuja releitura atenta não me sugere nenhuma alteração.

A propósito, anunciei aí atrás que precisaria da sua paciência enquanto explicava a outros o que é uma lousa. Posso agora agradecer e dispensar sua paciência, pois já apresentei a explicação. Você a notou? Sem preocupação literária, sem descrições enfadonhas, sem tom professoral, e até sem uma imagem para torná-la acessível visualmente, lá está ela com clareza suficiente para ser entendida até por quem nunca viu nem ouviu falar de lousa.

Você poderia argumentar que isso qualquer um faz. E eu lhe respondo com um desafio: Experimente...


(*) Jacinto Flecha é médico e colaborador da Abim

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