segunda-feira, 15 de dezembro de 2014

.: Protestante com alma católica, por Jacinto Flecha

Por: Jacinto Flecha


Profundo, impregnado de poesia e concebido com invejável simplicidade. Foi esta a minha impressão sobre o texto enviado por um leitor da minha crônica Do órgão à cuíca. Transcrevo-o parcialmente, com alterações mínimas:

“No dia de Pentecostes, os apóstolos falaram a língua que sabiam, e todos os turistas estrangeiros ouviram como se falassem nas suas próprias línguas. Para mim, a única explicação natural desse milagre seria que eles não falaram, mas cantaram. Deus está na música, sua beleza me basta. Talvez o canto gregoriano seja a maior produção da Igreja Católica no campo da música. Ouvindo o gregoriano, ele vai fazendo sua tarefa de sedução. Penetra suavemente nos ouvidos, como uma brisa aveludada que acaricia e inunda de suavidade a alma, até atingir o seu centro. Entrego-me à melodia, estou derrotado.

Um dos mais belos versos da língua portuguesa diz que todo cais é uma saudade de pedra. E eu acrescento: Todo sino é uma saudade de bronze. O cais anuncia partidas e distâncias, o sino anuncia mundos que não existem mais. Amo os sinos. Sua música é uma borboleta que entra na cela de uma prisão, vindo de lugares indefinidos num passado distante. Fala de mundos que só existem na saudade. Acho que Deus mora na saudade, e o repicar dos sinos, que nada diz e nada significa, é um altar construído com sons.


Onde estão os sinos? Não sei. A Igreja se modernizou, acho que ficou com vergonha das suas coisas antigas. Se eu fosse o Papa, ordenaria que os sinos fossem tocados às seis da manhã, ao meio-dia e às seis da tarde. Mais do que muitos sermões, isto faria o corpo se lembrar de Deus. Em São Paulo havia um seminário, e no centro do pátio um sino que marcava o ritmo da vida. Desapareceu, e no seu lugar puseram uma coisa moderna, uma cigarra estridente. Nada mais contraditório que o repicar dos sinos nas cidades grandes. Delas é o barulho das buzinas, motores, alto-falantes.


No vitral está a arte do trabalho com os vidros – cores, transparências, luz. Amo os vitrais. É maravilhosa uma catedral gótica quando a luz do sol se filtra através dos vitrais. Como no arco-íris, sua luz não pode ser tocada, transformar-se em ídolo. A alma é um vitral. A vida se retrata no tempo, formando um vitral de desenho sempre incompleto, de cores variadas, brilhantes, quando passa o sol.

Minha educação foi protestante. O protestantismo sempre teve medo da beleza em sua objetividade plástica. Por medo da idolatria, não produziu nada que pudesse comparar-se a obras de arte. Para não correr o risco do olho que escandaliza, os protestantes seguiram à risca o Evangelho e arrancaram os olhos. Amo na Igreja o que saiu das mãos dos artistas. A beleza salva sem nada dizer.


Os protestantes diziam que latim é coisa de padre, e não o estudavam, por isso não o aprendi. Os padres modernosos, com a pretensão de ensinar e conscientizar, dizem que ninguém entende o latim. Mas eu amo o latim porque não o entendo. Quando eles cantam sua música, só não entendo a letra, mas penetra em mim a suave melodia e o encanto do seu canto. O Papa deveria tornar obrigatório o latim. Se os sacerdotes só falassem latim, eu me converteria à Igreja, precisamente porque não o entendo. Um Deus que qualquer um compreende não pode ser grande coisa, um mar que a gente compreende não passa de um aquário. Também não entendo os riachos, os pássaros, o vento, as minhas netas, e os amo todos.


Amo a Igreja também por aquilo que ela faz com os meus sentidos. Cessado o pensamento, eu me transformo num ser só de sentidos, do jeito como nasci. Sou olhos, ouvidos, nariz, boca, pele. Vejo, ouço, sinto cheiros, sinto gostos, sinto toques. Amo os espaços vazios das catedrais góticas, por onde a alma voa. Amo os mosteiros e seus claustros, os jardins, as fontes, as ervas, o incenso.


Eu me converteria a uma Religião cujas palavras fossem silenciadas, para que a música pudesse ser ouvida. Diante da Igreja, enquanto ouvi o seu canto, ouvia uma outra voz, como que vindo nos interstícios do brando encanto com que o canto dela vinha até nós.”


Lamento não ter conhecido Rubem Alves, recentemente falecido. Embora eu nunca tenha tido um minuto sequer de formação protestante, admiro nesse protestante sensível e de alma grande o apreço que teve pelos valores culturais da civilização católica. Valores esquecidos e até repudiados por muitos que deveriam dar exemplo de amor e admiração por aquilo que eles representam. Rezei pela alma dele.

(*) Jacinto Flecha é médico e colaborador da Abim

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