terça-feira, 9 de dezembro de 2014

.: Entrevista com Deborah Secco sobre o filme "Boa Sorte"

Estreia da cineasta Carolina Jabor na direção de um longa-metragem de ficção, “Boa Sorte”, nos cinemas de todo o Brasil, narra uma história de amor improvável e transformadora entre João,  um jovem de 17 anos, inexperiente e tímido, e Judite, uma mulher de pouco mais  de 30 anos, que já experimentou de tudo na vida e está internada em uma clínica  de reabilitação. 

João (João Pedro Zappa) é um adolescente introspectivo, que não tem amigos e não recebe a menor atenção da família. Ele acredita piamente que, ao tomar um comprimido psicotrópico com refrigerante, fica invisível. Judite (Deborah Secco) já tomou todos os tipos de droga e contraiu o vírus da Aids. Internada em uma clínica de reabilitação, ela sabe que seu corpo não resistirá por muito tempo.

Depois de um episódio um tanto violento, os pais de João descobrem que o rapaz está tomando remédios da mãe e resolvem interná-lo. Na clínica, João conhece Judite – e desse encontro nasce uma paixão que marcará para sempre o futuro do rapaz.

“Boa Sorte” é uma adaptação do conto “Frontal com Fanta”, de Jorge Furtado, incluído na coletânea “Tarja Preta”, publicada pela editora Objetiva em 2005. Amiga e admiradora de Furtado, Carolina Jabor encontrou no conto o material que tanto procurava para realizar sua estreia em uma obra de ficção. “Queria muito fazer um filme contemporâneo, que falasse das questões atuais. Procurei bastante uma história, até que me deparei com esse conto do Jorge, sobre um tema, por acaso, muito próximo a mim naquele momento. Quando o li, o filho de uma grande amiga enfrentava a dependência química por remédios. Era uma situação difícil e instigante, que me chamou atenção para o assunto e para o conto”, conta Carolina. A atriz Deborah Secco, que interpreta a personagem Judite, dá esta entrevista.


Como você descreveria sua personagem?
Descrever Judite é uma tarefa complicada. Ela foi um pouco de tudo, experimentou um pouco de tudo. Sem dúvida é uma pessoa intensa, que viveu profundamente, inteiramente, loucamente, e agora vive a paz de quem já não tem mais o que fazer aqui, já esgotou todas as possibilidades. Ela traz uma forma de ver a vida com calma e serenidade. Talvez, se todos nós tivéssemos essa consciência, poderíamos ser bem mais felizes. A Judite é uma mulher inteira, tanto para experimentar a loucura quanto a calma, tanto para ter coragem como para ter medo. Ela tem uma força que eu, Deborah, gostaria de ter.

E como Judite chegou até você?
Judite não chegou até mim, essa personagem eu fui buscar, corri atrás dela. Soube através de uma amiga em comum que a Carol Jabor filmaria o conto “Frontal com Fanta”, do Jorge Furtado, e fiquei louca, porque já conhecia o conto e era apaixonada por ele. Aliás, sou apaixonada pelo Jorge como autor, é um dos poucos autores brasileiros que têm capacidade de emocionar e de falar com o público de uma forma simples, direta. Queria muito ter comprado esse conto, mas os direitos não estavam mais disponíveis. Quando soube que a Carol ia filmar, o elenco estava praticamente definido, mas resolvi ir atrás dela. Mandei um e-mail, pedindo para que ela fizesse um teste comigo. Consegui convencê-la a fazer o teste e, depois, entrei como coprodutora. Batalhei muito pelo filme, e acho que minha vontade de fazer a Judite, meu amor pela Judite, foi decisivo para Carol ter se rendido à minha pressão. E acho que foi a coisa mais certa que fiz na vida. Como atriz, até hoje não tive um trabalho tão intenso, profundo e que tenha me feito tão bem. 

Como foi voltar a um texto de Jorge Furtado, com quem você já tinha trabalhado em “Meu Tio Matou um Cara”, “Caramuru – A Invenção do Brasil”, entre outros?
Conheci o Jorge quando ele me chamou para fazer um teste para “A Invenção do Brasil”. Já o admirava muito, mas na época não imaginei que chegaria um convite dele. Fiz o teste para a Paraguaçu, com a Camila Pitanga, e eles acabaram optando por ela, que além de ser uma grande atriz, ainda representa o Brasil, fisicamente. Então eles me chamaram para fazer a Moema, irmã de Paraguaçu. No início falei  que não faria, porque ficaria com inveja, e inveja é a última coisa que eu quero sentir na minha vida. Passaram-se alguns meses e encontrei o Guel Arraes, que me contou ter escolhido outra atriz para fazer Moema. E aí pensei: “Puxa, vou ficar com inveja de duas atrizes! Que coisa péssima!” (risos). Liguei correndo para o Guel  e perguntei: “Ainda dá tempo de voltar?”. Fiz “A Invenção do Brasil” e fiquei mais próxima do Jorge. Depois, fui conhecê-lo mais profundamente quando ele me chamou para fazer o filme “Meu Tio Matou um Cara”. Fiquei encantada pela inteligência dele, pela doçura, pela forma com que vê a arte, pela forma com que ele trabalha junto com a família, a mulher e os filhos. Depois, ainda fizemos outros projetos. O mais recente foi “Decameron”, uma série para a TV Globo toda em verso, toda rimada. Foi nessa época que fui atrás dos livros dele e conheci “Frontal com Fanta”. Quis comprar os direitos, mas eles já não estavam disponíveis. E foi louco, porque um ano e meio depois, sai para jantar com uma das minhas melhores amigas e ela, coincidentemente, me contou que a Carol Jabor estava para filmar essa história, sobre uma mulher que conhece um menino mais novo em uma clínica de reabilitação. Foi a deixa para eu correr atrás.


Como você se preparou para viver Judite?
Antes mesmo de Carol Jabor confirmar que faria o filme, comecei a pesquisar. Fui conversar com alguns médicos sobre a Aids e a questão das drogas. Quando recebi a notícia de que faria mesmo o filme, ainda tivemos que administrar nossas agendas. Pela minha, precisaria que ela adiasse um pouco as filmagens – mas ela me contou que estava grávida. Na data em que eu poderia filmar, ela estaria parindo! Dei um jeito, então. E logo comecei a trabalhar com o Chico Accioly, que é um gênio, uma pessoa com uma visão e uma delicadeza diferente de tudo. Ele enxergou em mim todos os defeitos, e soube apresentá-los de uma forma doce e leve, de forma que eu pudesse consertá-los. Depois veio a Dani Visco para trabalhar a parte corporal, que acabou me dando uma aula de espiritualidade. Foi uma preparação muito vasta e diferente. O Chico trabalhou mais os textos, a Dani trabalhou a energia das cenas.


E a preparação física? Você precisou emagrecer, não?
Sim. Apesar da grande força de espírito da Judite, ela está muito debilitada fisicamente, e precisava trazer essa fragilidade no meu corpo. As pessoas deveriam me olhar e ver uma pessoa fraca, ao mesmo tempo tinha que interpretar essa alma forte. Por isso foi tão importante perder peso. Antes de filmar estava fazendo uma série, então tive apenas três semanas para emagrecer. Consegui perder 12 quilos, o que realmente foi bem difícil, mas hoje tenho certeza de que não foi nem o mais difícil, nem o mais importante para o filme. Bem mais importante foi ter conseguido um elo muito especial com o João Pedro Zappa para contar essa 
história de amor.

Como foi essa sintonia com seu principal parceiro de cena? 
João foi um grande parceiro. Nós nos apaixonamos verdadeiramente um pelo outro, não como homem e mulher, mas pela criação de um elo, por termos construirmos uma coisa juntos. Uma experiência que, tenho certeza, vai fazer com que a gente se ame para sempre para o resto da vida. Conseguimos a intimidade emocional e física que era necessária para o filme. Contamos uma história de amor que construímos entre a atriz e o ator e entre os personagens. A história mais importante a ser contada era o quanto Judite tinha a oferecer de vida para ele, e o quanto ela aprendeu com ele. Acho que a Judite foi amada de verdade pela primeira vez pelo João, então ela vai embora com um grande presente. Por que sermos genuinamente amados por alguém é algo raro, e talvez seja a melhor coisa podemos levar dessa vida. Ela no fim consegue isso, e ele talvez viva a vida inteira sem ter um amor como o dela. E João vai viver com esse amor alimentando a vida dele. Essa história de amor salva os dois, um salva o outro. De certa forma, Judite continua vivendo em João graças a esse amor, essa experiência que eles compartilharam.

Como você vê as questões abordadas pelo filme, como as drogas e a loucura?
O filme trata de assuntos muito atuais de uma forma leve e sutil. Vivemos uma época em que a dependência química aumentou muito. Não só de pessoas que optam por se drogar, mas também pessoas que são medicadas. Os remédios ganham importância cada vez maior, não param de surgir novas marcas, e cada vez mais pessoas fazem uso de remédios. O tema das drogas ilícitas também entra de forma muito sutil. Até que ponto a maconha é tão prejudicial, se for usada para medicar ou de forma mais consciente, com auxílio de informação? O que faz mais mal? Um remédio que contém diversos elementos químicos ou uma erva que pode te acalmar, te fazer dormir da mesma maneira? Eu não faço apologia de nada, ainda tenho muitas dúvidas, mas acho que o filme levanta essas dúvidas de forma muito interessante, ele te faz pensar. O que acho ótimo, porque odeio filmes que te trazem respostas. 

Como foi contracenar com Fernanda Montenegro?
Foi um dos momentos mais tensos e intensos da minha vida. Desde que soube que dona Fernanda faria minha avó no filme, foi uma das minhas maiores alegrias, mas foi difícil também, porque não conseguia parar de olhar para ela como a mulher que eu quero ser, a atriz que eu quero ser, a mãe que eu quero ser... Tenho uma imensa admiração por Fernanda não só como atriz, mas pela mulher que ela é. No  filme, Judite e a avó tem uma relação de vazio, de falta de amor, de lacuna, e eu realmente estava muito apreensiva. Para mim, era uma das cenas mais difíceis, porque conta toda a relação da Judite com a família, com a falta de pai, de mãe, a falta de afeto, está tudo ali, naquela cena. E ainda era com a Fernandona! Mas ela é de uma generosidade rara, e ter contracenado com ela só me fez crescer. Foi muito incrível ouvir palavras de incentivo, sobre minha dedicação, minhas escolhas, meu direcionamento de carreira. Já teria valido o filme por ter conhecido essa mulher, mas foi melhor do que eu podia imaginar. Foi realmente um privilégio, me sinto uma atriz muito privilegiada por ter contracenado com uma atriz que admiro tanto, com uma mulher que admiro tanto. Ela falou do frio na barriga, do medo que vem sempre, que todos nós artistas temos. Foi um alívio saber que ela estava com medo também. Foi confortante saber que estamos no mesmo barco. Bem, talvez não no mesmo barco - eu ainda estou de bote, ela já está de navio (risos) -, mas foi importante ouvir dela que o medo vai estar sempre presente. Isso me fez relaxar e olhar para ela como uma colega, uma colega especial, que admiro muito, mas uma colega.

E como você descreveria a direção de Carolina Jabor?
É impressionante como a Carolina tinha esse filme dentro dela. Ela sabia muito bem o que queria. Sabia quem eram esses personagens, a história que ia contar. Passava uma segurança rara de se encontrar por aí. Acho que a tecnologia digital tirou a necessidade do cineasta estudar. Quando era em película, o diretor precisava estudar a luz, o take. O negativo custa caro, acaba. Quando estudei cinema, os diretores preparavam muito o filme, decupavam tudo antes de ir para o set. Com o digital, tudo virou meio um ensaio. “Vamos para o set e lá a gente vê o que acontece”. A Carol, não. Ela me lembrou os diretores que estudei, que têm o roteiro na cabeça. É um filme de baixo orçamento, filmado em três semanas apenas, o que seria quase impossível, mas ela sabia tanto o que queria que poupou semanas de trabalho. Foi uma direção de cinema, uma experiência muito enriquecedora para mim.


Como você avalia a importância de Bruna Surfistinha e Judite em sua trajetória?
Comecei a minha carreira muito cedo, aos oito anos, e aos 13 fiz a série “Confissões de Adolescente”, com o Daniel Filho. A série era filmada, em película. Pude aprender o ofício de uma forma muito rica, poucas pessoas hoje em dia têm essa oportunidade. Fiz televisão, teatro, mas queria muito fazer cinema, e o cinema nacional estava crescendo. Veio o convite para o “Bruna Surfistinha”, o que me encheu de dúvida, porque o Marcos Baldini era um diretor estreante e a história estava na fronteira entre o filme que relata a vida dura de uma prostituta e a pornografia. Liguei para vários diretores, amigos e artistas que admirava e todos me recomendaram não fazer. Mas alguma coisa dentro de mim falava: “faz”. Consegui uma boa negociação e acabei virando um pouco dona do filme também. Tive liberdade para dizer o que queria e o que não queria que entrasse no filme depois de filmado. Isso foi muito importante para que pudesse fazer o trabalho daquela maneira, entregue. E foi a primeira vez que me desafiei como atriz. Peguei uma coisa que não sabia se sabia fazer. Tudo podia dar errado. Foram nove semanas e meia de filmagem, foi um longa-metragem com orçamento generoso. E quando terminei, tive a certeza: “Nunca mais quero deixar de fazer cinema”. Não quero deixar de enfrentar desafios que me tirem o sono. Pode ser que dê errado, mas tudo bem, quem não erra na vida? Pelo menos mergulhei, me desafiei, não fiquei no meu lugar comum. E depois do “Bruna”, comecei uma procura ansiosa e desenfreada por outra personagem capaz de me ensinar, de mudar minha mente, de me fazer enxergar a vida de uma forma diferente. E aí veio a Judite, um presente que não sei como agradecer. Porque, além de tudo, ela me deu a chance de exercitar outro tipo de interpretação, mais limpa, mais cinematográfica, mais intensa. Foi o presente que qualquer ator pediria aos céus. Ela veio para me ensinar tanta coisa, mudar tanto a minha vida. Eu não queria sair do set. É no cinema que consigo ir mais fundo, consigo buscar essa atriz que eu não sei se sou capaz de ser, e é esse desafio que quero para a minha vida, que começou no “Bruna” e que eu quero manter para o resto da minha vida. 


Sobre Deborah Secco
Atriz premiada por sua atuação como protagonista do longa-metragem “Bruna Surfistinha” (Marcus Baldini, 2010), Deborah Secco atuou também em outras grandes produções nacionais como “Confissões de Adolescente” (Daniel Filho, Cris D'Amato, 2013), “Meu Tio Matou um Cara” (Jorge Furtado, 2004) e “Caramuru – A Invenção do Brasil” (Guel Arraes e Jorge Furtado, 2000). Também está no elenco de 
“Estrada do Diabo” (André Moraes). Na TV, seu primeiro papel de destaque foi no seriado “Confissões de Adolescente”, em 1994. Desde então, Deborah, que começou sua carreira no teatro, vem consolidando uma carreira de muito sucesso na televisão, com papéis marcantes em novelas como “Insensato Coração”, “Laços de Família”, “Celebridade” e “América”, e séries como “Louco por Elas” e “Decamerão – A Comédia do Sexo”.
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