segunda-feira, 10 de novembro de 2014

.: Crônica "PokerFacebook", por Jacinto Flecha

Por Jacinto Flecha


Um espião que se fazia passar por surdo-mudo foi detido, e estava sendo interrogado pelo serviço de contra-espionagem. Tarefa difícil, pois o suspeito não ouvia nem podia responder. Tentaram vários artifícios, como uma explosão e um toque de corneta bem atrás dele, esperando que ele se traísse. Mas o espião já contava com isso, não se assustou nem demonstrou ter escutado. A equipe já dava como comprovada a inocência do suspeito, e o chefe cochichou com um dos auxiliares:

— Não adianta prosseguir, ele é de fato surdo-mudo.

Nesse momento, o espião “surdo” não resistiu ao ímpeto de cantar vitória, e um leve sorriso demonstrou que tinha bons ouvidos. Essa simples expressão fisionômica comprometedora bastou para conduzi-lo diretamente à prisão.

Expressões fisionômicas têm sido bem descritas por bons literatos, mostrando detalhes faciais ou de postura que indicam retidão de conduta ou desvios morais, classe social, etnia, estados de espírito e muitas outras características. Há descrições tão atraentes, que o leitor se sente dentro da cena, como se participasse da ação.

As artes plásticas, quando não são influenciadas por modernices, conseguem resultados esplêndidos nessa linha. A Gioconda, por exemplo, é até hoje objeto de estudos minuciosos e hipóteses diversas sobre o significado do seu sorriso enigmático. Algumas estátuas, embora tenham traços fisionômicos imutáveis, são esculpidas de modo a darem a impressão de criaturas vivas, com mudanças de expressão conforme o ângulo em que são vistas. Não são feitos para isso certos bustos de homenagem a personalidades, geralmente mostrando os traços básicos ou uma só característica.

Será que esse trabalho artístico ou descritivo tem alguma utilidade?
Quando falo de utilidade, algum leitor pode ser levado a julgar-me mal, por isso devo esclarecer que não estou falando de dinheiro. Não nego a utilidade do dinheiro, mas estou muito longe de considerá-lo o único ou o mais importante objetivo da vida. Não fujo também à tarefa de citar um exemplo em que o conhecimento das variações fisionômicas é lucrativo. No jogo de pôquer, ou mesmo no truco, certamente se daria mal o jogador que não consegue perceber no adversário as variações fisionômicas indicando alegria, desânimo, decepção, susto, blefe. Nesses jogos é essencial não demonstrar essas reações, daí a expressão inglesa "pokerface".

Passando a outra área, lembro um famoso ator do faroeste, cujas expressões fisionômicas eram muito limitadas. A ponto de um crítico comentar, com impiedosa mordacidade, que ele só tem duas caras: com chapéu e sem chapéu. Acho bem injusto o comentário, pois no bang-bang o que resolve é o Colt, não a cara.

A cirurgia plástica e seus derivados têm contribuído a seu modo para limitar ou reduzir as expressões fisionômicas. Puxa aqui, emenda ali, costura de cá e de lá, botox pra todo lado, e resulta que um sorriso destinado a ser agradável pode se transformar em careta. Uma gargalhada involuntariamente exagerada pode repuxar tecidos estrategicamente ajustados, forçando a pessoa plastificada a bancar uma esfinge; por medida de precaução, como se dissesse: ou me decifras, ou te devoro.

Alguém poderia objetar que estou dando importância exagerada às expressões fisionômicas. Afinal de contas, os sentimentos podem ser manifestados de muitas outras formas, como cantar, saltitar, assoviar, oscular. E os animais não têm recursos fisionômicos, mas se comunicam de outros modos, como os pássaros com seu canto, os sapos quando coaxam, os cachorros balançando o rabo ao ver o dono. Mas ninguém negará que as expressões fisionômicas são uma riqueza da espécie humana. Tanto que, se alguém me oferecesse um rabo em troca da minha possibilidade de sorrir, nem sei quais alterações fisionômicas meus membros superiores produziriam na cara dele... Note aí que até reticências podem indicar expressões fisionômicas.

No Facebook e outros inferninhos do gênero, expressões fisionômicas não são necessárias, pois seus usuários conversam por escrito (e que escrito!) enquanto olham retratos fixos, imutáveis, surdo-mudos. Se escreveu algo engraçado, basta acrescentar rsrsrs ou kkkk, e o outro deve entender que sorriu ou deu uma gargalhada. E os monstrinhos dos videogames não conseguem mudar aquelas caras imbecilizadas.

Pronto! Chegamos aonde queríamos.

Você sabia que as crianças viciadas em jogos eletrônicos e redes sociais perdem a capacidade de identificar expressões fisionômicas? Não podia ser outro o resultado, pois lidam quase o dia inteiro com monstros desses jogos e retratos com caras inertes. Monstros de videogames não mudam a cara, retratos também não. Quem passa grande parte da vida nesse meio, onde ninguém muda de cara, não chega a saber para que serve uma cara. Acho até que se deve mudar o nome para Pokerfacebook.

Seria uma barbada jogar pôquer com gente assim. Imagine também como deve ser irritante, decepcionante, desinstrutiva a companhia desses zumbis que não distinguem sorriso de careta, e olham para nossa cara como se estivessem diante de uma lista telefônica. Tenho sérias dúvidas de que empresários sejam bem servidos, colocando na direção dos seus negócios gente educada nessa “escola”.

(*) Jacinto Flecha é médico e colaborador da Abim
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