Nos meus primeiros doze anos, bucolicamente vividos sub tegmine fagi, o tempo se marcava ao ritmo de plantio e colheita, sem corre-corre, sirene de fábrica, relógio de ponto, plim-plim de TV, musiquinha de celular. Havia tempo para encher de perguntas os mais velhos, aprender enquanto se brincava, fazer amigos e visitá-los, avaliar oportunidades e riscos. Assunto importante a avaliação de riscos, uma das quais não consegui concluir na minha longínqua infância.
Tratava-se do seguinte. Eu costumava nadar com meus irmãos e amigos em um remanso do rio que banhava nossa fazenda. Dentro desse remanso havia uma pedra de bom tamanho, distando da margem pouco mais de um metro. Numa avaliação mental e à distância, acredito que bastaria abrir bem minhas pernas de hoje para colocar um pé na margem e outro na pedra. Era fácil chegar a ela nadando, mas pensei em fazer isso pulando da margem para a pedra, sobre o braço de rio que a contornava. Não era pequeno o risco de machucar-me gravemente, se meu salto não conseguisse alcançá-la. Se corresse para tomar impulso, o risco seria ainda maior, pois a margem do rio era inclinada e coberta de vegetação, tornando muito provável escorregar. Passei algum tempo ali, sem chegar a uma conclusão, e nunca me arrisquei a fazer o teste.
Com que propósito rememoro esse fato longínquo? Acontece que tenho observado o modo de vida das crianças citadinas de hoje, comparando-o com o que foi o meu e dos meus coetâneos. As diferenças são tantas, que a simples enumeração delas não caberia no espaço de uma crônica. É fácil percebê-las, observando o modo como as crianças aprendem (aprendem?!) hoje a atravessar uma rua, e comparando-o com o meu ao querer atravessar com um pulo aquele braço do rio. Tive de fazer a avaliação e decidir por mim mesmo, em função de outras coisas que me foram ensinadas. Poderia também pedir a opinião de um mais velho, depois de ter eu mesmo procurado resolver o assunto. Já as crianças de hoje, quanto tempo as mães ou babás dedicam a fazê-las atravessar a rua, cônscias de não poderem confiar-lhes a decisão? Quem se arriscaria a isso, com crianças de amadurecimento tão retardado?
Nem precisaria dizer que já comparei as diferenças das situações e dos seus respectivos riscos, mas o ponto que me atrai a atenção é outro. Quero saber o grau de maturidade que as crianças adquirem nos dois casos, consideradas ambas com a mesma idade. Nos meus seis ou sete anos, meus pais não tinham a menor dúvida em autorizar-me a nadar sozinho no rio, depois de me terem ensinado a nadar e explicado os riscos a evitar. Será que se poderia fazer o mesmo com crianças que passam grande parte da vida em ambientes fictícios de videogames?
Para começo de conversa, esses ambientes não correspondem às realidades que circundam as crianças, são virtuais, irreais. São elas capazes de entender as diferenças que há entre personagens, ambientes e dificuldades virtuais desses jogos e os ambientes, pessoas e dificuldades da vida real? Tudo indica que não, quando se sabe de crianças que morreram tentando voar como o Super-homem.
Uma criança pode praticar e jogar eximiamente um videogame no qual assume o papel, por exemplo, de um herói que defende o planeta contra alienígenas perigosos. Pode até derrotar todo o exército deles, bastando apertar o botão certo na hora certa. O que aprende com isso? Exagerando um pouco (apenas um pouco), aprende a apertar botões. Da mesma forma que numa definição jocosa de xadrez: um jogo chinês com o qual se aprende a jogar xadrez. Transpondo a definição para o videogame, pergunto-lhe se a criança aprende nele alguma coisa útil para a vida.
Na aprendizagem do meu tempo de criança, brincava-se com objetos reais, praticando até conseguir usá-los adequadamente e adquirir perícia superior à de um concorrente real. Posso citar meu exemplo pessoal com as bolinhas de gude, que eu jogava bem, e ganhei tantas que enchiam várias caixas. Já as crianças de hoje, mesmo que consigam derrotar todos os alienígenas, no final do jogo desligam o aparelho e desaparece tudo o que ganharam.
O que acontece quando uma criança dessas tem de enfrentar a vida real, onde tudo é diferente, muito mais difícil? Uma das possibilidades é ela desanimar de viver. E não é por acaso que os suicídios infantis aumentam em progressão alarmante. O número ainda é pequeno, e pouco provável o filho de algum de nós seguir esse caminho. Motivo para nos tranquilizarmos, para continuar a abastecê-los com esses instrumentos de deformação mental? Se você quer transformar seus filhos em adultos incapazes de enfrentar as dificuldades da vida – uma espécie de suicídio sem morte – dê-lhe todos os videogames que ele quiser. Pode ser um caminho interessante, se é isso o que você deseja para os seus filhos.
Caro leitor, não estou duvidando dos seus conhecimentos linguísticos, nem consinto que duvide dos meus. Sei que a etimologia de suicídio sempre indicou quem tira a vida de si mesmo. Como então o título desta crônica responsabiliza os pais pelo suicídio de filhos? Respondo que a deformação mental dessas crianças, e mesmo o suicídio, resulta de os pais proporcionarem e facilitarem essa fuga da realidade.
(*) Jacinto Flecha é médico e colaborador da Abim
Tratava-se do seguinte. Eu costumava nadar com meus irmãos e amigos em um remanso do rio que banhava nossa fazenda. Dentro desse remanso havia uma pedra de bom tamanho, distando da margem pouco mais de um metro. Numa avaliação mental e à distância, acredito que bastaria abrir bem minhas pernas de hoje para colocar um pé na margem e outro na pedra. Era fácil chegar a ela nadando, mas pensei em fazer isso pulando da margem para a pedra, sobre o braço de rio que a contornava. Não era pequeno o risco de machucar-me gravemente, se meu salto não conseguisse alcançá-la. Se corresse para tomar impulso, o risco seria ainda maior, pois a margem do rio era inclinada e coberta de vegetação, tornando muito provável escorregar. Passei algum tempo ali, sem chegar a uma conclusão, e nunca me arrisquei a fazer o teste.
Com que propósito rememoro esse fato longínquo? Acontece que tenho observado o modo de vida das crianças citadinas de hoje, comparando-o com o que foi o meu e dos meus coetâneos. As diferenças são tantas, que a simples enumeração delas não caberia no espaço de uma crônica. É fácil percebê-las, observando o modo como as crianças aprendem (aprendem?!) hoje a atravessar uma rua, e comparando-o com o meu ao querer atravessar com um pulo aquele braço do rio. Tive de fazer a avaliação e decidir por mim mesmo, em função de outras coisas que me foram ensinadas. Poderia também pedir a opinião de um mais velho, depois de ter eu mesmo procurado resolver o assunto. Já as crianças de hoje, quanto tempo as mães ou babás dedicam a fazê-las atravessar a rua, cônscias de não poderem confiar-lhes a decisão? Quem se arriscaria a isso, com crianças de amadurecimento tão retardado?
Nem precisaria dizer que já comparei as diferenças das situações e dos seus respectivos riscos, mas o ponto que me atrai a atenção é outro. Quero saber o grau de maturidade que as crianças adquirem nos dois casos, consideradas ambas com a mesma idade. Nos meus seis ou sete anos, meus pais não tinham a menor dúvida em autorizar-me a nadar sozinho no rio, depois de me terem ensinado a nadar e explicado os riscos a evitar. Será que se poderia fazer o mesmo com crianças que passam grande parte da vida em ambientes fictícios de videogames?
Para começo de conversa, esses ambientes não correspondem às realidades que circundam as crianças, são virtuais, irreais. São elas capazes de entender as diferenças que há entre personagens, ambientes e dificuldades virtuais desses jogos e os ambientes, pessoas e dificuldades da vida real? Tudo indica que não, quando se sabe de crianças que morreram tentando voar como o Super-homem.
Uma criança pode praticar e jogar eximiamente um videogame no qual assume o papel, por exemplo, de um herói que defende o planeta contra alienígenas perigosos. Pode até derrotar todo o exército deles, bastando apertar o botão certo na hora certa. O que aprende com isso? Exagerando um pouco (apenas um pouco), aprende a apertar botões. Da mesma forma que numa definição jocosa de xadrez: um jogo chinês com o qual se aprende a jogar xadrez. Transpondo a definição para o videogame, pergunto-lhe se a criança aprende nele alguma coisa útil para a vida.
Na aprendizagem do meu tempo de criança, brincava-se com objetos reais, praticando até conseguir usá-los adequadamente e adquirir perícia superior à de um concorrente real. Posso citar meu exemplo pessoal com as bolinhas de gude, que eu jogava bem, e ganhei tantas que enchiam várias caixas. Já as crianças de hoje, mesmo que consigam derrotar todos os alienígenas, no final do jogo desligam o aparelho e desaparece tudo o que ganharam.
O que acontece quando uma criança dessas tem de enfrentar a vida real, onde tudo é diferente, muito mais difícil? Uma das possibilidades é ela desanimar de viver. E não é por acaso que os suicídios infantis aumentam em progressão alarmante. O número ainda é pequeno, e pouco provável o filho de algum de nós seguir esse caminho. Motivo para nos tranquilizarmos, para continuar a abastecê-los com esses instrumentos de deformação mental? Se você quer transformar seus filhos em adultos incapazes de enfrentar as dificuldades da vida – uma espécie de suicídio sem morte – dê-lhe todos os videogames que ele quiser. Pode ser um caminho interessante, se é isso o que você deseja para os seus filhos.
Caro leitor, não estou duvidando dos seus conhecimentos linguísticos, nem consinto que duvide dos meus. Sei que a etimologia de suicídio sempre indicou quem tira a vida de si mesmo. Como então o título desta crônica responsabiliza os pais pelo suicídio de filhos? Respondo que a deformação mental dessas crianças, e mesmo o suicídio, resulta de os pais proporcionarem e facilitarem essa fuga da realidade.
(*) Jacinto Flecha é médico e colaborador da Abim
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