sábado, 1 de setembro de 2012

.: Entrevista com Manoel Herzog, escritor de “Os Bichos”

“Marcas, a vida vai deixando em todos nós, exceto em Dorian Gray – mas o retrato dele é uma lástima. A vida é sucessão de escolhas, concessões e pecados todos cometemos.” - Manoel Herzog


Por: Helder Miranda, com colaboração de André Azenha e Mary Ellen Farias dos Santos
Em setembro de 2012


Ironia e crítica em obra literária que trata da situação política brasileira. Saiba mais do autor de "Os Bichos", Manoel Herzog.


O ditado diz que não se deve discutir política e religião. Mas “Os Bichos”, livro de Manoel Herzog, aborda esses temas de forma irônica e crítica. Editada pela editora Realejo, a obra mistura tarô, natureza e monarquia francesa, em um caldeirão que mira a situação política brasileira. 

Advogado há 22 anos, escreve desde pequeno. Participou de antologias e publicou o primeiro livro em 1987, “Brincadeira Surrealista”, de poesias, pela antiga Livraria Iporanga. Em 2009, foi finalista do prêmio Sesc com o romance ainda inédito “Fuga Amazônia de Mim”, sobre um homem na faixa dos quarenta anos, em crise, que vai ao Amazonas repensar a vida. Também ministra oficinas literárias. 

Em “Os Bichos”, Herzog traça um paralelo entre o urubu, ave que nasce branca e vai escurecendo conforme se alimenta de sujeiras, e o ser humano, que começa puro, mas se contamina com os males da sociedade. A trama acompanha um jovem idealista, que se apaixona pela filha de um político corrupto e acaba fazendo concessões para se aproximar da amada. “Tinha iniciado uma série de contos escritos em primeira pessoa com as vozes desses animais, como um cachorro que viveu comigo durante 16 anos. Tem dez animais que permeiam a narrativa do livro. E a história se desenvolve por um narrador onisciente, em terceira pessoa, e vai nessas duas linhas - seguem em paralelo e se encontram no final”, explica o autor. 

"As alegorias são uma forma direta de crítica dos costumes e serviram de base para o humanismo avançar um milímetro na direção da vida do espírito, evocada por grandes como Montaigne e Leopardi. Neste ‘Os Bichos’, de Manoel Herzog, temos um tipo mais sofisticado de alegoria, onde a ironia sutil é capaz de forjar um pensamento denso, que se alimenta de uma rica simbologia”, definiu o escritor Marcelo Ariel, na contracapa do livro.

Várias personalidades verídicas da Região Metropolitana da Baixada Santista são citadas ao longo da trama, apesar da narrativa acontecer em uma cidade fictícia. Para conceber o projeto, Herzog realizou um intenso trabalho de pesquisa. Inclusive, foi à França, onde buscou informações detalhadas das catedrais de Notre Dame e Saint-Denis, e do Palácio de Versalles - busca que surgiu em uma exposição sobre o lar da monarquia francesa, em São Paulo, anos atrás. “Os personagens do livro são monarquistas. Se compararmos, aquela realeza e os atuais políticos brasileiros estão bem próximos. Eles não se preocupam com a sociedade”, diz.



RESENHANDO – Em “Os Bichos”, você traça um paralelo entre o urubu, ave que nasce branca e vai escurecendo conforme se alimenta de sujeiras, e o ser humano, que chega à vida puro, mas se contamina com os males da sociedade. Há algo de autobiográfico nisso?
MANOEL HERZOG - Marcas, a vida vai deixando em todos nós, exceto em Dorian Gray – mas o retrato dele é uma lástima. A vida é sucessão de escolhas, concessões e pecados todos cometemos. Isso pra gente se converte em rugas, pro urubu, em penas pretas. Tenho procurado me aproximar de Deus, e fugido, na profissão e na vida, de tudo o que contraria meus princípios e, creia, a gente vê muita coisa que contraria. Assim, com esta vida de monge, se eu fizesse algo autobiográfico não despertaria interesse nos leitores. Meu protagonista é refém da corrupção, é venal, depravado, etc. É um eu piorado, digamos.


RESENHANDO - O que você tem de urubu, e vice e versa?
MH - Cada criatura viva tem um pouco da outra, talvez a ligação de cada centelha com a chama primordial. Compreender isto é um processo, digamos, cristão. O contrário é quando se pensa ser diferente, superior, vip, exclusive, privé, first class etc.


RESENHANDO - O ditado diz que não se deve discutir política e religião. Por que fez isso no livro?
MH - Ditados e dogmas existem para serem contestados. Mas não pretendi discutir estes temas no livro, trouxe apenas uma visão.


RESENHANDO - A mistura tarô, natureza, monarquia francesa, podem fazer um bom romance?
MH - Um bom romance não se faz de ingredientes. “Ulysses”, de Joyce, por exemplo, leva mil páginas para falar de um único dia na vida de um homem absolutamente comum, e é uma obra-prima. Não creio em ingredientes para compor narrativas. Talvez temperos, itens que se adicionam para sabor, mas que não são a essência do prato.


RESENHANDO - Como surgiu a ideia de escrever "Os Bichos"?
MH - Andei “internado” no meio do mato um período, um pequeno sítio onde crio alguns bichinhos. Lá, procurando entender a essência de cada bicho, comecei criando contos, em primeira pessoa, como se o cachorro falasse, a vaca, o porco, o galo etc. Enxerguei, depois, um fio narrativo ligando as vozes dos animais, um enredo que era permeado pelos bichos. Foi assim.


RESENHANDO - Como, quando, e porque começou a escrever? 
MH - Maomé, que era analfabeto, ditou o Corão, segundo o recebeu da inspiração divina, a um escriba. Digo isto para tentar desvincular a criação literária da alfabetização. Mas é quase impossível. Aprender a escrever é fundamental. Assim, eu acho que comecei a escrever muito cedo, nos tempos da cartilha “Caminho Suave”, talvez. Mas, com certeza, literariamente, no momento em que usei de alguma criatividade e impressionei a professora, por quem era apaixonado. De lá pra cá escrevo pra uma interlocutora imaginária, a quem busco seduzir. 


RESENHANDO - Por que um advogado resolve escrever literatura?
MH - Não resolve. Eu escrevia antes de ser advogado, e penso mesmo que a profissão inviabiliza a literatura, obrigando a outra forma de uso da palavra escrita.


RESENHANDO - O que seus textos dizem sobre você?
MH - O mesmo que as linhas da mão: tudo. E olha que eu tento falar de outras coisas.


RESENHANDO - O que, por exemplo?
MH - Depende da ignição, a fagulha inicial. Algum comando vem de algum lugar pra escrever aquilo. Daí eu tento.


RESENHANDO - Como foi ser um dos finalistas do prêmio Sesc de Literatura? 
MH - Foi muito agradável e, por isso, perigoso. O ego é o grande inimigo do escritor. Procuro ficar distante. À comissão julgadora, na fase classificatória, eu não tive acesso – mas sou grato por terem escolhido meu romance.


RESENHANDO - Qual a diferença entre “Os Bichos” e o que foi finalista do Prêmio Sesc?
MH - Sou dos que acha que um autor escreve o mesmo livro em sucessivas versões. Os Bichos é reflexo de mais maturidade, só isso.


RESENHANDO - Como as histórias e os personagens surgem para você?
MH - Há, em algum momento, a ignição, e começo a contar alguma história. Depois, sem a menor noção de onde a coisa vai desembocar, deixo que o enredo surja por si, as personagens falem o que querem. Muitas vezes é preciso voltar lá atrás, adaptar, etc. No fim, dá tudo certo.


RESENHANDO - Você ensina literatura. Como um escritor se coloca em aulas desse segmento?
MH - Sempre tenho o cuidado de explicar que não se ensina alguém a ser escritor. Trocam-se ideias, é pra isso que me ponho à frente da turma. No fundo, todos que chegam ali já têm seu estilo, a convivência e a prática é que aprimoram.



RESENHANDO - O que você aprende dando aulas de literatura?
MH - Muitas coisas. Entre elas ver a angústia dos que tentam lutar com a folha em branco, a dificuldade de achar um estilo próprio, a idéia rebelde que resiste à caneta ou ao teclado. Angústias que me são tão conhecidas. E a beleza, a grandiosidade da poesia, a literatura dos grandes mestres, que vou lá estudar com os colegas, compartilhar esse universo tão único com meus alunos/mestres.


RESENHANDO - O que o arrebata como leitor?
MH - O texto honesto, em que se possa ver a alma do autor. E tem umas almas muito loucas, pode acreditar.


RESENHANDO - A sua trajetória como advogado também renderia um romance? 
MH - Tudo rende um romance, é uma questão de saber contar. Assim, a trajetória de um advogado provinciano pode até render um romance. Mas não penso em escrever sobre isto, não vejo nada de interessante. O conflito humano rende boas histórias, e o foro é fértil em conflitos humanos. Há situações picarescas, outras tristes, mas prefiro nunca falar diretamente sobre a humanidade alheia, em respeito aos clientes. Na literatura é mais legal, adaptam-se situações reais a seres fictícios.


RESENHANDO - Você considera que melhorou como escritor ao longo do tempo?
MH - A gente deve melhorar com o passar do tempo, senão está vivendo errado. Gosto de uma das muitas sabedorias do Zeca Pagodinho: “o homem só aprende a vida quando dela se aposenta.” Acho que é isso, a gente vai melhorando. Uma hora, fica tão bom que morre.


RESENHANDO - Qual a musa inspiradora perfeita para um escritor?
MH - A que ele busca encantar. É infinita e múltipla essa musa. Thomas Mann a via como um lindo menino louro, Nabokov como uma Lolita pecaminosa. Pedofilias à parte, Santo Agostinho escrevia para Deus, Joyce para sua mulher, Almodóvar cria para sua mãe, e assim por diante. Comum a todas estas musas é um sentido maior, de poesia, da grande arte que elas personificam e que o artista, seu escravo, lhes tributa, como a uma santa, com olhos suplicantes.

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