Guillermo Arriaga, um escritor à mercê de seus personagens
Por: Lídia Maria de Melo, convidada especial
Em setembro de 2010
Munido de arco e flechas, o premiado escritor e cineasta mexicano Guillermo Arriaga se embrenha por semanas no deserto ao Norte de seu país.
‘‘Sou enlouquecido por caçadas’’, confessa. Essa atividade, como diz, requer paciência e dedicação, mas o põe em contato com a natureza árida que tanto o atrai e ele tão bem retrata em seus filmes e livros. ‘‘Mantenho uma relação profunda com esse território. É a paisagem que melhor entendo’’.
Mas nem a caça, que ele pratica desde os 12 anos, nem o deserto conseguem afastá-lo da decisão que anunciou a seus pais, Carlos e Amélia, quando ainda era criança: ‘‘Quero me tornar escritor. E também ator, diretor e atleta profissional’’.
Os esportes continuam em sua vida, mas como atividade amadora. ‘‘Tenho feito futebol, tênis, pingue-pongue, squash, natação, voleibol, beisebol, box e pólo aquático, além da caça’’, relaciona, frisando que não vê contradição entre o pendor literário e a atividade esportiva. ‘‘Pensar que um escritor não faz esportes não passa de um lugar comum. É preciso acabar com os clichês’’.
Arriaga, que é graduado em Comunicação e História, até chegou a jogar futebol em um time de primeira divisão. ‘‘Mas careci de talento e disciplina’’, reconhece. Uma doença no coração foi outro motivo de impedimento.
As demais escolhas feitas na infância estão sendo cumpridas.Todas convergem para o principal motor que move esse homem de 52 anos, 1,86m, 92 quilos e grandes olhos verdes, que passam a impressão de nunca se fechar: ‘‘Desde menino, me seduz a ideia de contar histórias’’.
Para Arriaga, não há diferença entre escrever livros ou filmes.Tudo é produção literária. ‘‘Eu sou um escritor,um contador de histórias’’. Há muito, desde ‘‘Amores Brutos’’, ‘‘21 Gramas’’ e ‘‘Babel’’ , seu dom para a narrativa ultrapassa as fronteiras mexicanas e o coloca entre os principais nomes do cinema atual e da literatura latino-americana contemporânea.
ENTREVISTA: Entrevistei Guillermo Arriaga por e-mail, entre duas viagens dele em junho. Uma, ao Festival de Cinema em Aruba, e outra, a Vancouver, no Canadá, onde estuda o filho, Santiago, de 17 anos. E continuamos mantendo conversas, nas madrugadas, pelo site de relacionamentos Twitter, onde ele escreve em espanhol e inglês, mas até se esforça para se comunicar em português: ‘‘Boa sorte, Lídia. Boa noite’’. Quando não consegue, Arrisca um portunhol, como fez antes do primeiro jogo da Seleção Brasileira na Copa do Mundo: ‘‘Claro que voy a ver o jogo do Brasil’’.
Sempre gentil e amistoso, sem afetações típicas de celebridades, esse ex-professor universitário, nascido na Cidade do México sob o nome completo de Guillermo Arriaga Jordán, fala de literatura, cinema, esportes, família, infância e escritores favoritos. Também dá dicas para quem deseja se aventurar no mundo das narrativas e conta sobre os novos textos que está produzindo.
No ano que vem, dentro da série ‘‘Cities of Love’’ (Cidades do Amor), participará do projeto ‘‘Rio, Eu Te Amo’’ com um curta-metragem sobre a Cidade Maravilhosa, ao lado de mais nove diretores. Entre eles, Fernando Meirelles (‘‘Cidade de Deus’’ e ‘‘Ensaio Sobre a Cegueira’’) e José Padilha (‘‘Tropa de Elite’’). Arriaga ainda não tem ideia do tema que abordará, nem de quem convidar.
Para retratar o Rio de Janeiro, não encontrará dificuldade: ‘‘Adoro o Brasil, é um país ao qual volto a cada ano. Parece-me um lugar vital, intenso, poderoso. Sua força se traduz em sua arte e sua cultura. Os brasileiros às vezes ignoram a maravilha de sociedade que são’’.
No início do ano, rodou o curta-metragem ‘‘El Pozo’’ (O Poço) para a TV Azteca, como parte da comemoração dos 200 anos da independência do México. Com pessoas comuns de pequenos povoados do Estado de Cohauila, contou um pouco da revolução mexicana. O filme será exibido neste mês de setembro no Festival de Veneza, onde Arriaga integrará o júri dos longa-metragens.
Atualmente, está às voltas com duas novas histórias. Uma tem como tema o ciúme doentio. ‘‘Como não sou ciumento, me parecem muito estranhos os ciumentos. E escrever sobre ciumento é mais estranho ainda’’, comenta.
A outra é uma encomenda do ator Brad Pitt. A primeira versão está pronta, mas Arriaga precisa reescrever, prática comum enquanto cria. É a adaptação do livro ‘‘The Tiger: A True Story of Vengeance and Survival’’, de John Vaillant, ainda inédito no Brasil e que trata de tigres da Sibéria. Junto com Darren Atonofsky, o mesmo diretor de ‘‘O Lutador’’, Brad Pitt faz a produção do trabalho, mas ainda não sabe se vai estrelar.
Arriaga desenvolve seus enredos no escritório que mantém em sua própria casa. Entre os objetos da decoração, além dos troféus, destacam-se caveiras de vários tipos. ‘‘É para lembrar que a morte nos acerca diariamente e que a arte é a única maneira de vencê-la’’.
A PRÓPRIA VIDA LHE DÁ ENREDOS E INSPIRAÇÃO: Guillermo Arriaga iniciou a vida profissional de escritor em 1991, aos 33 anos, com o romance ‘‘Esquadrão Guilhotina’’, sob as bênçãos de Laura Esquivel. Ao participar de um concurso literário, não venceu, mas a autora de ‘‘Como Água Para Chocolate’’ , que fazia parte do júri, indicou-o a seu editor, Jaime Aljure. A obra foi escrita quando ele tinha 22 anos.
Marcadas por episódios garimpados em sua própria vida, as histórias do mexicano estão ainda nos romances ‘‘O Búfalo da Noite’’ (1994) e ‘‘Um Doce Aroma de Morte’’ (1999), vertidos para vários idiomas e editados no Brasil pela Gryphus. Ele também publicou a coletânea de contos ‘‘Retorno 201’’, recém-traduzida para o romeno e com lançamento brasileiro previsto para este ano.
O título desse livro de contos faz referência ao endereço do conjunto habitacional de classe média onde Arriaga morou na infância, na própria Cidade do México: ‘‘Cresci na Unidade Modelo, Retorno 201, apartamento 87, telefone 32-3301, Zona Postal 13, Delegação Iztapalapa’’.
Digo que me faltam informações sobre essa obra, e ele me responde: ‘‘Eu escrevi ‘‘Retorno 201’’ entre os 24 e 26 anos de idade. Três contos foram escritos depois’’. Arriaga conta também que, enquanto criava ‘‘O Búfalo da Noite’’, ouvia a guitarra de Jimmi Hendrix e o rock do grupo inglês The Doors. Já ‘‘Um Doce Aroma de Morte’’ foi produzido sob os acordes de Los Tigres Del Norte, um grupo regional de música latino-americana, e o impacto das imagens fotografadas por Miguel Rio Branco, espanhol radicado no Brasil.
Desde o título, esse romance é marcado por descrições de cheiros: de queimado, do perfume da personagem morta, do corpo em decomposição, da morte. Pergunto a Arriaga como isso é possível, já que ele perdeu o olfato aos 13 anos, durante uma briga de rua.
A explicação inicial parece simples: ‘‘Quando um cego perde a visão, seu olfato fica mais refinado. Quando alguém perde o olfato, o sentido do paladar se faz mais agudo e preciso’’. Mas o complemento surpreende: ‘‘Há ocasiões em que posso cheirar com a língua. E não é uma metáfora, é real. E quando há muita umidade e certas condições, sou capaz de perceber cheiros distantes’’.
O escritor lembra que o poeta argentino Jorge Luiz Borges era cego e obcecado por espelhos. ‘‘Eu tenho obsessão por odores’’.
DEPOIS DE CORRER O MUNDO, A ESTREIA NO MÉXICO: Noite de 20 de julho. Chove torrencialmente na Cidade do México. O aguaceiro não é empecilho para que o escritor e cineasta Guillermo Arriaga chegue ao cinema onde, finalmente, ocorrerá a avant-premiére de ‘‘Fuego’’ (Fogo) em território mexicano.
O filme, que no Brasil recebeu o inadequado título de ‘‘Vidas que se Cruzam", marcou sua estreia como diretor há dois anos, no Festival de Veneza, sob longos aplausos. No elenco, duas ganhadoras de Oscar, Charlize Theron e Kim Basinger.
Originalmente denominado ‘‘The Burning Plain’’ (Planície Queimada, numa tradução livre), o longa-metragem já esteve em cartaz em outros 15 países, mas só no dia 23 de julho entrou em circuito nacional no México, por problemas com os distribuidores.
O título brasileiro remete ao estilo de narrar de Arriaga e serviria a qualquer um de seus outros trabalhos. Na Espanha, o filme foi chamado de ‘‘Lejos de La Tierra Quemada’’ (Longe da Terra Queimada), na Argentina, ‘‘Camino a La Redención’’ (Caminho para a Redenção), na Venezuela, ‘‘Corazones Ardientes’’ (Corações Ardentes).
Arriaga só opinou no título do México, que faz referência a uma cena de incêndio que ele testemunhou aos 9 anos de idade e vitimou uma família, perto de sua casa. No filme, histórias também escritas por Arriaga são entrelaçadas, do mesmo modo como ele já fez em ‘‘Amores Brutos’’, ‘‘21 Gramas’’, ‘‘Os Três Enterros de Melquíades Estrada’’ e ‘‘Babel’’.
A carga dramática leva o público a se esquecer da beleza física de Charlize Theron. Interpretando Sylvia, ela é uma mulher sofrida que parece carregar nos ombros todo o peso do mundo. Gina, de Kim Basinger, transmite a impressão de estar diante de sua última chance para ser feliz. Tessa Ia, na pele de Maria, é uma sábia menina.
Jennifer Lawrence, aos 17 anos, vive uma adolescente impetuosa, que lhe valeu o Prêmio de Melhor Atriz Revelação, no Festival de Veneza, em 2008. Sua personagem leva o nome da filha de Arriaga, Mariana. ‘‘Jennifer acaba de ser anunciada como a protagonista de ‘‘The X-Men’’, festeja o escritor.
Claro que o longa tem personagens masculinos. Os principais são vividos por Joaquim de Almeida, J. D. Pardo, John Corbett e José María Yazpik. Mas Arriaga fez um filme em que as mulheres, com seus amores, seus anseios e suas angústias, obrigam os homens a orbitar em torno delas. Na sessão de 20 de julho, realizada apenas para convidados, com a presença do elenco mexicano, Arriaga é recebido por jornalistas, fãs, amigos e a família. ‘‘Muito emocionado’’, confessou no site de relacionamentos Twitter.
‘‘Vou entrar no tapete vermelho. Vieram meus pais (Carlos e Amélia), meus irmãos (Carlos, Jorge e a também escritora Patrícia Arriaga Jordán) e sobrinhos e primos e muita gente’’. À tarde, ele agradeceu aos jornalistas que compareceram à entrevista coletiva de divulgação do filme e ainda expressou: ‘‘De coração, obrigado por suas palavras de alento. A todos que me escreveram, um abraço. Me comove o apoio que recebi da comunidade twitera’’.
Nos dias que precederam a estreia mexicana, Arriaga estava visivelmente nervoso e passava horas desperto. Quando não dava entrevistas, deixava notas no Twitter. Relacionou no site o nome de toda a equipe que trabalhou no filme, diante e atrás das câmeras. Seus seguidores no site até iniciaram uma campanha para que ele dormisse. Enviei também uma mensagem e ele me respondeu em português: ‘‘Não (tenho) conseguido dormir. Estava em entrevista com jornalistas. Tudo bem em Santos?’’.
TRÊS FILMES E UMA BRIGA PELA AUTORIA: Embora registre em seu currículo curtas como ‘‘Rogélio’’ e ‘‘El Pozo’’, Arriaga tornou-se conhecido no mundo cinematográfico pelos roteiros dos filmes ‘‘Amores Brutos’’; ‘‘21 Gramas’’ e ‘‘Babel’’.
Os longa-metragens foram dirigidos por Alejandro González Iñárritu,conterrâneo com quem Arriaga rompeu definitivamente há quatro anos.‘‘Ele traiu acordos de cavalheiros que fizemos quando decidimos trabalhar juntos.E traiu desde o início’’, diz.
Arriaga evita se alongar sobre o fim da parceria, mas é público que não aceita o fato de um diretor ser considerado o autor em um trabalho cinematográfico. Ele defende que, como em uma peça teatral,a realização é de toda uma equipe, a partir da história do escritor. Por isso, abomina a expressão ''Um filme de...'', utilizada nos créditos antes do nome do diretor. ‘‘Parece-me sempre uma falta de respeito com todos os que fazem o filme’’, explica. ‘‘E qual foi a razão para seguirmos juntos?’’, ele mesmo pergunta, para em seguida responder: ‘‘Muito fácil: as obras se saíam bem’’.
NAS MADRUGADAS, É QUE NASCEM AS HISTÓRIAS: É nas madrugadas que Guillermo Arriaga escreve diariamente. ‘‘A noite diz coisas que de dia não se pode escutar’’,explica. Diante do computador, não espera por musas ou inspiração. ‘‘A musa, para mim, aparece quando me sento para escrever’’. E ele tem um bom argumento para nunca desistir de atingir a marca de ao menos meia página até as 9 da manhã. ‘‘Um caixa de banco não se questiona se tem que ir trabalhar’’. Há um outro mais fatalista: ‘‘Não descanso nenhum dia. A morte tampouco. Se me surpreende, que ao menos fique alguma coisa depois de mim’’.
A morte é um tema mais do que recorrente em seus escritos: ‘‘Ela está tão certa de nos alcançar, que nos dá toda uma vida de vantagem’’. É uma grande preocupação?, pergunto. Ele nega, mas nunca demonstra indiferença ao assunto. Em junho, diante da notícia do falecimento do escritor português José Saramago, expressou: ‘‘Hoje, só morreu um pouco de Saramago. O outro Saramago sobrevive e, para que viva mais, é preciso lê-lo’’.
Também não deixou de comentar o assassinato do candidato ao governo do estado mexicano de Tamaulipas, antes das eleições: ‘‘Lamento profundamente a morte de Rodolfo Torre. Cada vida perdida me dói. Toda morte insensata é uma vergonha para o México’’.
A expressão mais comovida foi sobre a recente perda do ator Dennis Hopper. ‘‘Estou triste e me sinto mal de não ter podido produzir seu último filme como diretor. Não éramos próximos, mas confiou em mim. Pude vê-lo umas semanas antes. Era um tipo muito inteligente, agradável e talentoso. Sempre foi amável comigo. De verdade, lamento’’.
ENCICLOPÉDIAS E CARTAS: Quando criança, Arriaga passava horas nas ruas, depois que chegava da escola. Mas se admirava com os textos curtos das enciclopédias e escrevia cartas para as meninas. Era a maneira como melhor se organizava, já que sofria de hiperatividade e déficit de atenção.
Ainda hoje se distrai todo o tempo, por isso cria artifícios para se concentrar. Se fraqueja diante do silêncio de seus personagens, lembra das palavras de Marguerite Duras: ‘É preciso ser mais forte que a obra’’.
Ele escreve tanto que às vezes provoca lesões nos nervos das mãos. Mas se consola: ‘‘Criar nos cobra cotas. Não importa, criamos mundos narrativos, personagens’’.
De antemão, nunca sabe qual será o final de seus enredos e prefere conhecer pouco sobre os personagens. ‘‘Gosto de descobrir junto com eles’’, diz. ‘‘Se sei demasiadamente, sinto que não vão me surpreender’’.
Quase todas suas histórias estão relacionadas a algum fato que viveu, sentiu ou presenciou. Ele nunca pesquisa antes de escrever. ‘‘Falo somente do que conheço. Quero que em meu trabalho se sinta a rua, o campo. Que se sintam esses lugares, esses momentos, essa gente, que me são próximos’’.
Muitos de seus personagens recebem os nomes de seus familiares, amigos e animais. No filme Amores Brutos, por exemplo, o cachorro de estimação do protagonista se chama Cofi. Uma homenagem ao cão que teve quando criança. Ao terminar de escrever um romance ou um filme, Arriaga submete o texto a um grupo de pessoas em quem confia. Entre eles, estão a mulher, Maria Eugênia, que ele chama carinhosamente de Maru, e a filha de 15 anos, Mariana.
A partir das sugestões, ele reescreve várias vezes. ‘‘Essa é a tarefa de um escritor. Polir a linguagem de tal maneira que pareça que é fácil’’. Compara seu método, com o do ex-jogador francês Platini: ‘‘Para que pareça fácil dar um passe de 50 metros, é necessário praticar anos’’.
Além dos pais, Carlos e Amélia, que sempre o educaram para que seguisse sua vocação, uma de suas grandes incentivadoras é Maria Eugênia, a quem ele define como ‘‘mulher maravilhosa’’. Quando se casaram e ele lhe disse que queria escrever, ela o apoiou: ‘‘Adiante’’. Quando soube que isso iria significar dificuldades econômicas, não recuou: ‘‘Ela acreditou em mim e, graças a ela e a seu amor e incentivo, pude dedicar-me a ser escritor’’.
A última vez que conversei com Arriaga, antes de finalizar esta matéria, foi na madrugada de 25 de julho. ‘‘Buenas, que bom encontrá-lo de novo na madrugada’’, saudei. Prontamente, ele retornou, dominando quase totalmente o português:‘‘Boa noite, meu querida Lídia. Viajo uma semana. Depois, eu vou voltar’’. Então, até a volta. A gente se fala!
Por: Lídia Maria de Melo, convidada especial
Em setembro de 2010
Munido de arco e flechas, o premiado escritor e cineasta mexicano Guillermo Arriaga se embrenha por semanas no deserto ao Norte de seu país.
‘‘Sou enlouquecido por caçadas’’, confessa. Essa atividade, como diz, requer paciência e dedicação, mas o põe em contato com a natureza árida que tanto o atrai e ele tão bem retrata em seus filmes e livros. ‘‘Mantenho uma relação profunda com esse território. É a paisagem que melhor entendo’’.
Mas nem a caça, que ele pratica desde os 12 anos, nem o deserto conseguem afastá-lo da decisão que anunciou a seus pais, Carlos e Amélia, quando ainda era criança: ‘‘Quero me tornar escritor. E também ator, diretor e atleta profissional’’.
Os esportes continuam em sua vida, mas como atividade amadora. ‘‘Tenho feito futebol, tênis, pingue-pongue, squash, natação, voleibol, beisebol, box e pólo aquático, além da caça’’, relaciona, frisando que não vê contradição entre o pendor literário e a atividade esportiva. ‘‘Pensar que um escritor não faz esportes não passa de um lugar comum. É preciso acabar com os clichês’’.
Arriaga, que é graduado em Comunicação e História, até chegou a jogar futebol em um time de primeira divisão. ‘‘Mas careci de talento e disciplina’’, reconhece. Uma doença no coração foi outro motivo de impedimento.
As demais escolhas feitas na infância estão sendo cumpridas.Todas convergem para o principal motor que move esse homem de 52 anos, 1,86m, 92 quilos e grandes olhos verdes, que passam a impressão de nunca se fechar: ‘‘Desde menino, me seduz a ideia de contar histórias’’.
Para Arriaga, não há diferença entre escrever livros ou filmes.Tudo é produção literária. ‘‘Eu sou um escritor,um contador de histórias’’. Há muito, desde ‘‘Amores Brutos’’, ‘‘21 Gramas’’ e ‘‘Babel’’ , seu dom para a narrativa ultrapassa as fronteiras mexicanas e o coloca entre os principais nomes do cinema atual e da literatura latino-americana contemporânea.
ENTREVISTA: Entrevistei Guillermo Arriaga por e-mail, entre duas viagens dele em junho. Uma, ao Festival de Cinema em Aruba, e outra, a Vancouver, no Canadá, onde estuda o filho, Santiago, de 17 anos. E continuamos mantendo conversas, nas madrugadas, pelo site de relacionamentos Twitter, onde ele escreve em espanhol e inglês, mas até se esforça para se comunicar em português: ‘‘Boa sorte, Lídia. Boa noite’’. Quando não consegue, Arrisca um portunhol, como fez antes do primeiro jogo da Seleção Brasileira na Copa do Mundo: ‘‘Claro que voy a ver o jogo do Brasil’’.
Sempre gentil e amistoso, sem afetações típicas de celebridades, esse ex-professor universitário, nascido na Cidade do México sob o nome completo de Guillermo Arriaga Jordán, fala de literatura, cinema, esportes, família, infância e escritores favoritos. Também dá dicas para quem deseja se aventurar no mundo das narrativas e conta sobre os novos textos que está produzindo.
No ano que vem, dentro da série ‘‘Cities of Love’’ (Cidades do Amor), participará do projeto ‘‘Rio, Eu Te Amo’’ com um curta-metragem sobre a Cidade Maravilhosa, ao lado de mais nove diretores. Entre eles, Fernando Meirelles (‘‘Cidade de Deus’’ e ‘‘Ensaio Sobre a Cegueira’’) e José Padilha (‘‘Tropa de Elite’’). Arriaga ainda não tem ideia do tema que abordará, nem de quem convidar.
Para retratar o Rio de Janeiro, não encontrará dificuldade: ‘‘Adoro o Brasil, é um país ao qual volto a cada ano. Parece-me um lugar vital, intenso, poderoso. Sua força se traduz em sua arte e sua cultura. Os brasileiros às vezes ignoram a maravilha de sociedade que são’’.
No início do ano, rodou o curta-metragem ‘‘El Pozo’’ (O Poço) para a TV Azteca, como parte da comemoração dos 200 anos da independência do México. Com pessoas comuns de pequenos povoados do Estado de Cohauila, contou um pouco da revolução mexicana. O filme será exibido neste mês de setembro no Festival de Veneza, onde Arriaga integrará o júri dos longa-metragens.
Atualmente, está às voltas com duas novas histórias. Uma tem como tema o ciúme doentio. ‘‘Como não sou ciumento, me parecem muito estranhos os ciumentos. E escrever sobre ciumento é mais estranho ainda’’, comenta.
A outra é uma encomenda do ator Brad Pitt. A primeira versão está pronta, mas Arriaga precisa reescrever, prática comum enquanto cria. É a adaptação do livro ‘‘The Tiger: A True Story of Vengeance and Survival’’, de John Vaillant, ainda inédito no Brasil e que trata de tigres da Sibéria. Junto com Darren Atonofsky, o mesmo diretor de ‘‘O Lutador’’, Brad Pitt faz a produção do trabalho, mas ainda não sabe se vai estrelar.
Arriaga desenvolve seus enredos no escritório que mantém em sua própria casa. Entre os objetos da decoração, além dos troféus, destacam-se caveiras de vários tipos. ‘‘É para lembrar que a morte nos acerca diariamente e que a arte é a única maneira de vencê-la’’.
A PRÓPRIA VIDA LHE DÁ ENREDOS E INSPIRAÇÃO: Guillermo Arriaga iniciou a vida profissional de escritor em 1991, aos 33 anos, com o romance ‘‘Esquadrão Guilhotina’’, sob as bênçãos de Laura Esquivel. Ao participar de um concurso literário, não venceu, mas a autora de ‘‘Como Água Para Chocolate’’ , que fazia parte do júri, indicou-o a seu editor, Jaime Aljure. A obra foi escrita quando ele tinha 22 anos.
Marcadas por episódios garimpados em sua própria vida, as histórias do mexicano estão ainda nos romances ‘‘O Búfalo da Noite’’ (1994) e ‘‘Um Doce Aroma de Morte’’ (1999), vertidos para vários idiomas e editados no Brasil pela Gryphus. Ele também publicou a coletânea de contos ‘‘Retorno 201’’, recém-traduzida para o romeno e com lançamento brasileiro previsto para este ano.
O título desse livro de contos faz referência ao endereço do conjunto habitacional de classe média onde Arriaga morou na infância, na própria Cidade do México: ‘‘Cresci na Unidade Modelo, Retorno 201, apartamento 87, telefone 32-3301, Zona Postal 13, Delegação Iztapalapa’’.
Digo que me faltam informações sobre essa obra, e ele me responde: ‘‘Eu escrevi ‘‘Retorno 201’’ entre os 24 e 26 anos de idade. Três contos foram escritos depois’’. Arriaga conta também que, enquanto criava ‘‘O Búfalo da Noite’’, ouvia a guitarra de Jimmi Hendrix e o rock do grupo inglês The Doors. Já ‘‘Um Doce Aroma de Morte’’ foi produzido sob os acordes de Los Tigres Del Norte, um grupo regional de música latino-americana, e o impacto das imagens fotografadas por Miguel Rio Branco, espanhol radicado no Brasil.
Desde o título, esse romance é marcado por descrições de cheiros: de queimado, do perfume da personagem morta, do corpo em decomposição, da morte. Pergunto a Arriaga como isso é possível, já que ele perdeu o olfato aos 13 anos, durante uma briga de rua.
A explicação inicial parece simples: ‘‘Quando um cego perde a visão, seu olfato fica mais refinado. Quando alguém perde o olfato, o sentido do paladar se faz mais agudo e preciso’’. Mas o complemento surpreende: ‘‘Há ocasiões em que posso cheirar com a língua. E não é uma metáfora, é real. E quando há muita umidade e certas condições, sou capaz de perceber cheiros distantes’’.
O escritor lembra que o poeta argentino Jorge Luiz Borges era cego e obcecado por espelhos. ‘‘Eu tenho obsessão por odores’’.
DEPOIS DE CORRER O MUNDO, A ESTREIA NO MÉXICO: Noite de 20 de julho. Chove torrencialmente na Cidade do México. O aguaceiro não é empecilho para que o escritor e cineasta Guillermo Arriaga chegue ao cinema onde, finalmente, ocorrerá a avant-premiére de ‘‘Fuego’’ (Fogo) em território mexicano.
O filme, que no Brasil recebeu o inadequado título de ‘‘Vidas que se Cruzam", marcou sua estreia como diretor há dois anos, no Festival de Veneza, sob longos aplausos. No elenco, duas ganhadoras de Oscar, Charlize Theron e Kim Basinger.
Originalmente denominado ‘‘The Burning Plain’’ (Planície Queimada, numa tradução livre), o longa-metragem já esteve em cartaz em outros 15 países, mas só no dia 23 de julho entrou em circuito nacional no México, por problemas com os distribuidores.
O título brasileiro remete ao estilo de narrar de Arriaga e serviria a qualquer um de seus outros trabalhos. Na Espanha, o filme foi chamado de ‘‘Lejos de La Tierra Quemada’’ (Longe da Terra Queimada), na Argentina, ‘‘Camino a La Redención’’ (Caminho para a Redenção), na Venezuela, ‘‘Corazones Ardientes’’ (Corações Ardentes).
Arriaga só opinou no título do México, que faz referência a uma cena de incêndio que ele testemunhou aos 9 anos de idade e vitimou uma família, perto de sua casa. No filme, histórias também escritas por Arriaga são entrelaçadas, do mesmo modo como ele já fez em ‘‘Amores Brutos’’, ‘‘21 Gramas’’, ‘‘Os Três Enterros de Melquíades Estrada’’ e ‘‘Babel’’.
A carga dramática leva o público a se esquecer da beleza física de Charlize Theron. Interpretando Sylvia, ela é uma mulher sofrida que parece carregar nos ombros todo o peso do mundo. Gina, de Kim Basinger, transmite a impressão de estar diante de sua última chance para ser feliz. Tessa Ia, na pele de Maria, é uma sábia menina.
Jennifer Lawrence, aos 17 anos, vive uma adolescente impetuosa, que lhe valeu o Prêmio de Melhor Atriz Revelação, no Festival de Veneza, em 2008. Sua personagem leva o nome da filha de Arriaga, Mariana. ‘‘Jennifer acaba de ser anunciada como a protagonista de ‘‘The X-Men’’, festeja o escritor.
Claro que o longa tem personagens masculinos. Os principais são vividos por Joaquim de Almeida, J. D. Pardo, John Corbett e José María Yazpik. Mas Arriaga fez um filme em que as mulheres, com seus amores, seus anseios e suas angústias, obrigam os homens a orbitar em torno delas. Na sessão de 20 de julho, realizada apenas para convidados, com a presença do elenco mexicano, Arriaga é recebido por jornalistas, fãs, amigos e a família. ‘‘Muito emocionado’’, confessou no site de relacionamentos Twitter.
‘‘Vou entrar no tapete vermelho. Vieram meus pais (Carlos e Amélia), meus irmãos (Carlos, Jorge e a também escritora Patrícia Arriaga Jordán) e sobrinhos e primos e muita gente’’. À tarde, ele agradeceu aos jornalistas que compareceram à entrevista coletiva de divulgação do filme e ainda expressou: ‘‘De coração, obrigado por suas palavras de alento. A todos que me escreveram, um abraço. Me comove o apoio que recebi da comunidade twitera’’.
Nos dias que precederam a estreia mexicana, Arriaga estava visivelmente nervoso e passava horas desperto. Quando não dava entrevistas, deixava notas no Twitter. Relacionou no site o nome de toda a equipe que trabalhou no filme, diante e atrás das câmeras. Seus seguidores no site até iniciaram uma campanha para que ele dormisse. Enviei também uma mensagem e ele me respondeu em português: ‘‘Não (tenho) conseguido dormir. Estava em entrevista com jornalistas. Tudo bem em Santos?’’.
TRÊS FILMES E UMA BRIGA PELA AUTORIA: Embora registre em seu currículo curtas como ‘‘Rogélio’’ e ‘‘El Pozo’’, Arriaga tornou-se conhecido no mundo cinematográfico pelos roteiros dos filmes ‘‘Amores Brutos’’; ‘‘21 Gramas’’ e ‘‘Babel’’.
Os longa-metragens foram dirigidos por Alejandro González Iñárritu,conterrâneo com quem Arriaga rompeu definitivamente há quatro anos.‘‘Ele traiu acordos de cavalheiros que fizemos quando decidimos trabalhar juntos.E traiu desde o início’’, diz.
Arriaga evita se alongar sobre o fim da parceria, mas é público que não aceita o fato de um diretor ser considerado o autor em um trabalho cinematográfico. Ele defende que, como em uma peça teatral,a realização é de toda uma equipe, a partir da história do escritor. Por isso, abomina a expressão ''Um filme de...'', utilizada nos créditos antes do nome do diretor. ‘‘Parece-me sempre uma falta de respeito com todos os que fazem o filme’’, explica. ‘‘E qual foi a razão para seguirmos juntos?’’, ele mesmo pergunta, para em seguida responder: ‘‘Muito fácil: as obras se saíam bem’’.
NAS MADRUGADAS, É QUE NASCEM AS HISTÓRIAS: É nas madrugadas que Guillermo Arriaga escreve diariamente. ‘‘A noite diz coisas que de dia não se pode escutar’’,explica. Diante do computador, não espera por musas ou inspiração. ‘‘A musa, para mim, aparece quando me sento para escrever’’. E ele tem um bom argumento para nunca desistir de atingir a marca de ao menos meia página até as 9 da manhã. ‘‘Um caixa de banco não se questiona se tem que ir trabalhar’’. Há um outro mais fatalista: ‘‘Não descanso nenhum dia. A morte tampouco. Se me surpreende, que ao menos fique alguma coisa depois de mim’’.
A morte é um tema mais do que recorrente em seus escritos: ‘‘Ela está tão certa de nos alcançar, que nos dá toda uma vida de vantagem’’. É uma grande preocupação?, pergunto. Ele nega, mas nunca demonstra indiferença ao assunto. Em junho, diante da notícia do falecimento do escritor português José Saramago, expressou: ‘‘Hoje, só morreu um pouco de Saramago. O outro Saramago sobrevive e, para que viva mais, é preciso lê-lo’’.
Também não deixou de comentar o assassinato do candidato ao governo do estado mexicano de Tamaulipas, antes das eleições: ‘‘Lamento profundamente a morte de Rodolfo Torre. Cada vida perdida me dói. Toda morte insensata é uma vergonha para o México’’.
A expressão mais comovida foi sobre a recente perda do ator Dennis Hopper. ‘‘Estou triste e me sinto mal de não ter podido produzir seu último filme como diretor. Não éramos próximos, mas confiou em mim. Pude vê-lo umas semanas antes. Era um tipo muito inteligente, agradável e talentoso. Sempre foi amável comigo. De verdade, lamento’’.
ENCICLOPÉDIAS E CARTAS: Quando criança, Arriaga passava horas nas ruas, depois que chegava da escola. Mas se admirava com os textos curtos das enciclopédias e escrevia cartas para as meninas. Era a maneira como melhor se organizava, já que sofria de hiperatividade e déficit de atenção.
Ainda hoje se distrai todo o tempo, por isso cria artifícios para se concentrar. Se fraqueja diante do silêncio de seus personagens, lembra das palavras de Marguerite Duras: ‘É preciso ser mais forte que a obra’’.
Ele escreve tanto que às vezes provoca lesões nos nervos das mãos. Mas se consola: ‘‘Criar nos cobra cotas. Não importa, criamos mundos narrativos, personagens’’.
De antemão, nunca sabe qual será o final de seus enredos e prefere conhecer pouco sobre os personagens. ‘‘Gosto de descobrir junto com eles’’, diz. ‘‘Se sei demasiadamente, sinto que não vão me surpreender’’.
Quase todas suas histórias estão relacionadas a algum fato que viveu, sentiu ou presenciou. Ele nunca pesquisa antes de escrever. ‘‘Falo somente do que conheço. Quero que em meu trabalho se sinta a rua, o campo. Que se sintam esses lugares, esses momentos, essa gente, que me são próximos’’.
Muitos de seus personagens recebem os nomes de seus familiares, amigos e animais. No filme Amores Brutos, por exemplo, o cachorro de estimação do protagonista se chama Cofi. Uma homenagem ao cão que teve quando criança. Ao terminar de escrever um romance ou um filme, Arriaga submete o texto a um grupo de pessoas em quem confia. Entre eles, estão a mulher, Maria Eugênia, que ele chama carinhosamente de Maru, e a filha de 15 anos, Mariana.
A partir das sugestões, ele reescreve várias vezes. ‘‘Essa é a tarefa de um escritor. Polir a linguagem de tal maneira que pareça que é fácil’’. Compara seu método, com o do ex-jogador francês Platini: ‘‘Para que pareça fácil dar um passe de 50 metros, é necessário praticar anos’’.
Além dos pais, Carlos e Amélia, que sempre o educaram para que seguisse sua vocação, uma de suas grandes incentivadoras é Maria Eugênia, a quem ele define como ‘‘mulher maravilhosa’’. Quando se casaram e ele lhe disse que queria escrever, ela o apoiou: ‘‘Adiante’’. Quando soube que isso iria significar dificuldades econômicas, não recuou: ‘‘Ela acreditou em mim e, graças a ela e a seu amor e incentivo, pude dedicar-me a ser escritor’’.
A última vez que conversei com Arriaga, antes de finalizar esta matéria, foi na madrugada de 25 de julho. ‘‘Buenas, que bom encontrá-lo de novo na madrugada’’, saudei. Prontamente, ele retornou, dominando quase totalmente o português:‘‘Boa noite, meu querida Lídia. Viajo uma semana. Depois, eu vou voltar’’. Então, até a volta. A gente se fala!
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