Reescritura e pop erudição
Por: Luiz Horácio
Em setembro de 2004
Meus professores e meu parentes têm muito em comum. Da maioria daqueles não guardo sequer o nome, da corporação destes cultuo a ausência. Durante meu permanente aprendizado três professores, entre convencionais e nem tanto, se destacaram e um quarto começa a gravar sua importância em minh'alma. São eles: seu Alvorino,meu pai, Prado Veppo, Fausto Wolff e Gilda Dieguez.
De meu pai o começo e ininterrupto incentivo, de Prado Veppo o sutil empurrãozinho que fui perceber anos mais tarde, Fausto Wolff por simplesmente tudo e Gilda pelo conhecimento, inquietação e o peculiar olhar afiado mirando sempre além das montanhas. De resto é puro resto de traças. O professor é um ator cansado e sem talento que incorporou um único personagem a reproduzir ad nauseam o mesmo texto. Não gostaram?
Serei mais claro então: O professor é um rádio. Daqueles com válvulas. O ator cansado convive em invejável harmonia com o aluno fantoche resultando daí, um exemplo apenas, a tutela do Ináfio Lula da Filva. O panorama é desolador para quem imaginava a existência como um palco de surpresas. Mas nem tudo está perdido quando restam as esquinas e numa dessas esquinas da vida, sob luz sutil irrompe em espetáculo solo Marici Passini e seu "Hamlet-romance: uma reescritura" (Rio de Janeiro: Garamond, 2003).
Espanta o fato de uma autora se dedicar a reescritura e espanta ainda mais quando se trata de uma das obras mais famosas de Shakespeare e talvez a mais rica dada a sua fartura de temas:política, moral., violência, tragédia de amor, drama familiar, etc.. Sua montagem na íntegra ocuparia 6 horas. Infelizmente isso não afasta a horda de aventureiros que teima em encenar Shakespeare. Aqui no Rio de Janeiro nunca falta um terrorista cultural fustigando o William. Agora é a vez de A Tempestade, o culpado é Luiz Arthur Nunes.
Voltemos ao que de fato interessa, o Hamlet de Marici Passini. Isso mesmo, o Hamlet de Marici. Caso você tenha sido maldoso e pensado em plágio ou simplório, vislumbrando paródia, sinto muito, foi um lamentável equívoco .
A reescritura, embora não tenha uma função, exige criatividade resultando daí uma obra distinta capaz de suportar uma comparação com o texto original, o Hamlet de Shakespeare é o maior exemplo.O primeiro Hamlet é resultado da inventividade de Saxo Grammaticus no século XIII e até encontrar William Shakespeare era do conhecimento de poucos. Foi a reescritura de Shakespeare que derrubou as fronteiras para a moral duvidosa do atormentado e vingativo príncipe.Inúmeras reescrituras, paródias e plágios aconteceram até o século XIX quando então surge a novela Hamlet de Jules Laforgue, obra que mesclava elementos de Saxo Gramaticus e Shakespeare. Tanto a história do mundo quanto a história da literatura são produtos de suas próprias reescrituras, porém o que as distingue é a sutileza, enquanto o massacre de Beslan é a reescritura do grotesco, de vários outros massacres, só que agora contemplando a infância, na literatura, mais uma vez e com talento, somos brindados com uma reescritura primorosa de Hamlet.
Marici Passini não partiu desta ou daquela obra, optou pelo protagonista, o príncipe de moral duvidosa, incapaz de separar o bem do mal,o intelectual paralisado. Não se tratasse de Hamlet poderíamos afirmar que a obra de Marici dispensa a referência embora as nítidas relações de intertextualidade e hipertextualidade. Insisto que partindo de um hipotexto diferente deste de Shakespeare teríamos uma obra sem dúvida autônoma mas tendo como partida o bardo de Stratford a tarefa se torna praticamente impossível. No entanto a obra de Marici não demonstra em nenhum momento perda de fôlego, esgotamento do veio, tampouco limitação de abrangência. O plano de imanência da escritora é imenso e pode ser comprovado ao longo da obra.
Chama atenção este Hamlet-romance: uma reescritura pela intenção da autora em não se deixar seduzir pela opção cômoda e ingênua de atualizar o drama, simplesmente trazendo a tragédia para nossos dias, fazendo de Hamlet, por exemplo, um engenheiro vivendo em Manhatan. Longe disso. A autora deixou Hamlet em seu território de origem e aproveitando a riqueza do legado de Shakespeare faz sua reescritura da tragédia ornamentada por sua refinada e ampla visão de mundo. Raros são os escritores que não dissociam o plano artístico do plano ideológico e Marici vem se juntar a Fausto Wolff, Carlos Heitor Cony e mais meia dúzia de dois ou três. Escritores que esquecem o umbigo sem esquecer que uma das prerrogativas do artista, daquele que faz a diferença, é apontar a injustiça social.
Marici Passini brinda o leitor com uma erudição útil, garimpa o que de melhor existe na cultura pop e insere em situações corriqueiras, acessíveis a qualquer mortal, do mais exigente ao mais conformado.
Ao leitor deste Hamlet-Romance: uma reescritura é facultado o direito de escolher a forma de mergulhar nas páginas, com ou sem equipamento. Num mergulho livre se limitará às luzes básicas da superfície - o desenvolvimento linear do enredo, porém continuará à sua disposição, em águas mais profundas e turvas, um enredo fragmentado, arranjado caoticamente. A reflexão estética que a leitura enseja também se presta a comprovar a originalidade da criação evitando incluir a autora na longa lista dos imitadores de Joyce .
A autora trata do drama de Hamlet sem dramatizar a história, narrativa afinada, nada além do necessário apesar das constantes referências à cultura popular, o que não deprecia a obra visto que os citados não estão comprometidos com a vulgaridade artística.
Impressiona a quantidade de referências da cultura pop e impressiona ainda mais por em nenhum momento qualquer delas soar gratuita. Dos anjos de "Asas do Desejo" de Win Wenders passando pelo alienista de Machado de Assis, Hitchcock,Orson Welss chegando a cantora alemã Ute Lemper sem esquecer Thelonius Monk , Charles Mingus e a deslumbrante natureza carioca. Não meus amigos Marici Passini não tem nenhum compromisso com a banalidade, trata-se de uma erudição viva, uma pop-erudição para ser mais exato.
Não estou falando de leitura para intervalo de futebol mas do trato exigido por uma literatura associada a cultura, no país da auto-ajuda, das "perdas e ganhos" isso não é pouca coisa não, estou me referindo a uma obra que deve ser vivida com a serenidade de um amor maduro e o arrebatamento de uma paixão definitiva . Shakespeare fez de Hamlet um "espelho à natureza" Marici Passini fez de seu Hamlet- romance:uma reescritura um espelho à literatura.
Durante meu permanente aprendizado quatro professores, entre convencionais e nem tanto, se destacaram e um quinto começa a gravar sua importância em minh'alma...
Livro: Hamlet-Romance: uma reescritura
Autora: Marici Passini
193 páginas
Editora: Garamond
Por: Luiz Horácio
Em setembro de 2004
Meus professores e meu parentes têm muito em comum. Da maioria daqueles não guardo sequer o nome, da corporação destes cultuo a ausência. Durante meu permanente aprendizado três professores, entre convencionais e nem tanto, se destacaram e um quarto começa a gravar sua importância em minh'alma. São eles: seu Alvorino,meu pai, Prado Veppo, Fausto Wolff e Gilda Dieguez.
De meu pai o começo e ininterrupto incentivo, de Prado Veppo o sutil empurrãozinho que fui perceber anos mais tarde, Fausto Wolff por simplesmente tudo e Gilda pelo conhecimento, inquietação e o peculiar olhar afiado mirando sempre além das montanhas. De resto é puro resto de traças. O professor é um ator cansado e sem talento que incorporou um único personagem a reproduzir ad nauseam o mesmo texto. Não gostaram?
Serei mais claro então: O professor é um rádio. Daqueles com válvulas. O ator cansado convive em invejável harmonia com o aluno fantoche resultando daí, um exemplo apenas, a tutela do Ináfio Lula da Filva. O panorama é desolador para quem imaginava a existência como um palco de surpresas. Mas nem tudo está perdido quando restam as esquinas e numa dessas esquinas da vida, sob luz sutil irrompe em espetáculo solo Marici Passini e seu "Hamlet-romance: uma reescritura" (Rio de Janeiro: Garamond, 2003).
Espanta o fato de uma autora se dedicar a reescritura e espanta ainda mais quando se trata de uma das obras mais famosas de Shakespeare e talvez a mais rica dada a sua fartura de temas:política, moral., violência, tragédia de amor, drama familiar, etc.. Sua montagem na íntegra ocuparia 6 horas. Infelizmente isso não afasta a horda de aventureiros que teima em encenar Shakespeare. Aqui no Rio de Janeiro nunca falta um terrorista cultural fustigando o William. Agora é a vez de A Tempestade, o culpado é Luiz Arthur Nunes.
Voltemos ao que de fato interessa, o Hamlet de Marici Passini. Isso mesmo, o Hamlet de Marici. Caso você tenha sido maldoso e pensado em plágio ou simplório, vislumbrando paródia, sinto muito, foi um lamentável equívoco .
A reescritura, embora não tenha uma função, exige criatividade resultando daí uma obra distinta capaz de suportar uma comparação com o texto original, o Hamlet de Shakespeare é o maior exemplo.O primeiro Hamlet é resultado da inventividade de Saxo Grammaticus no século XIII e até encontrar William Shakespeare era do conhecimento de poucos. Foi a reescritura de Shakespeare que derrubou as fronteiras para a moral duvidosa do atormentado e vingativo príncipe.Inúmeras reescrituras, paródias e plágios aconteceram até o século XIX quando então surge a novela Hamlet de Jules Laforgue, obra que mesclava elementos de Saxo Gramaticus e Shakespeare. Tanto a história do mundo quanto a história da literatura são produtos de suas próprias reescrituras, porém o que as distingue é a sutileza, enquanto o massacre de Beslan é a reescritura do grotesco, de vários outros massacres, só que agora contemplando a infância, na literatura, mais uma vez e com talento, somos brindados com uma reescritura primorosa de Hamlet.
Marici Passini não partiu desta ou daquela obra, optou pelo protagonista, o príncipe de moral duvidosa, incapaz de separar o bem do mal,o intelectual paralisado. Não se tratasse de Hamlet poderíamos afirmar que a obra de Marici dispensa a referência embora as nítidas relações de intertextualidade e hipertextualidade. Insisto que partindo de um hipotexto diferente deste de Shakespeare teríamos uma obra sem dúvida autônoma mas tendo como partida o bardo de Stratford a tarefa se torna praticamente impossível. No entanto a obra de Marici não demonstra em nenhum momento perda de fôlego, esgotamento do veio, tampouco limitação de abrangência. O plano de imanência da escritora é imenso e pode ser comprovado ao longo da obra.
Chama atenção este Hamlet-romance: uma reescritura pela intenção da autora em não se deixar seduzir pela opção cômoda e ingênua de atualizar o drama, simplesmente trazendo a tragédia para nossos dias, fazendo de Hamlet, por exemplo, um engenheiro vivendo em Manhatan. Longe disso. A autora deixou Hamlet em seu território de origem e aproveitando a riqueza do legado de Shakespeare faz sua reescritura da tragédia ornamentada por sua refinada e ampla visão de mundo. Raros são os escritores que não dissociam o plano artístico do plano ideológico e Marici vem se juntar a Fausto Wolff, Carlos Heitor Cony e mais meia dúzia de dois ou três. Escritores que esquecem o umbigo sem esquecer que uma das prerrogativas do artista, daquele que faz a diferença, é apontar a injustiça social.
Marici Passini brinda o leitor com uma erudição útil, garimpa o que de melhor existe na cultura pop e insere em situações corriqueiras, acessíveis a qualquer mortal, do mais exigente ao mais conformado.
Ao leitor deste Hamlet-Romance: uma reescritura é facultado o direito de escolher a forma de mergulhar nas páginas, com ou sem equipamento. Num mergulho livre se limitará às luzes básicas da superfície - o desenvolvimento linear do enredo, porém continuará à sua disposição, em águas mais profundas e turvas, um enredo fragmentado, arranjado caoticamente. A reflexão estética que a leitura enseja também se presta a comprovar a originalidade da criação evitando incluir a autora na longa lista dos imitadores de Joyce .
A autora trata do drama de Hamlet sem dramatizar a história, narrativa afinada, nada além do necessário apesar das constantes referências à cultura popular, o que não deprecia a obra visto que os citados não estão comprometidos com a vulgaridade artística.
Impressiona a quantidade de referências da cultura pop e impressiona ainda mais por em nenhum momento qualquer delas soar gratuita. Dos anjos de "Asas do Desejo" de Win Wenders passando pelo alienista de Machado de Assis, Hitchcock,Orson Welss chegando a cantora alemã Ute Lemper sem esquecer Thelonius Monk , Charles Mingus e a deslumbrante natureza carioca. Não meus amigos Marici Passini não tem nenhum compromisso com a banalidade, trata-se de uma erudição viva, uma pop-erudição para ser mais exato.
Não estou falando de leitura para intervalo de futebol mas do trato exigido por uma literatura associada a cultura, no país da auto-ajuda, das "perdas e ganhos" isso não é pouca coisa não, estou me referindo a uma obra que deve ser vivida com a serenidade de um amor maduro e o arrebatamento de uma paixão definitiva . Shakespeare fez de Hamlet um "espelho à natureza" Marici Passini fez de seu Hamlet- romance:uma reescritura um espelho à literatura.
Durante meu permanente aprendizado quatro professores, entre convencionais e nem tanto, se destacaram e um quinto começa a gravar sua importância em minh'alma...
Livro: Hamlet-Romance: uma reescritura
Autora: Marici Passini
193 páginas
Editora: Garamond
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