Pedro, cearense que trocou o Nordeste pela selva de pedra paulistana, teve a audácia de tirar seu protagonista de um dos escritórios mais elitistas do país e jogá-lo direto no palco de um boteco caindo aos pedaços, onde o stand-up não serve só para fazer rir - mas para anestesiar a alma e expor as feridas. A prosa é ácida, rápida e perigosamente viciante. Nesta entrevista, o autor se senta no banco dos réus e responde por seus crimes literários: zombar da meritocracia, debochar da hipocrisia corporativa, rir da nossa fome de sentido. Compre o livro "O Maior Ser Humano Vivo" neste link.
Resenhando.com - O seu protagonista, Nilo, engole a vida como um dry martini - forte, amargo e cheio de sobressaltos. Até que ponto esse vício na intensidade é uma metáfora para a própria São Paulo contemporânea, ou para a geração que você retrata?
Pedro Guerra - Essa ideia de São Paulo, embora também estereotipada, é uma representação bastante fiel de um certo recorte da geração nascida no final do anos 70 e começo dos anos 80. São pessoas que aprenderam que aqui “é onde as coisas acontecem”. Os americanos têm Nova Iorque, que Frank Sinatra resumia nos versos “se você consegue vencer aqui, consegue vencer em qualquer lugar”. São Paulo é, por esse prisma, a nossa Nova Iorque.
Resenhando.com - O sucesso vertiginoso e a queda do protagonista caminham lado a lado com uma crise profunda de identidade e saúde mental. Você acredita que essa mistura de ambição e vulnerabilidade é o novo normal do jovem profissional brasileiro?
Pedro Guerra - Existe uma força, que é ao mesmo tempo opressora e sedutora, agindo sobre nós todos e principalmente sobre os mais jovens. A promessa de riqueza anda lado a lado com o fantasma do fracasso - e quando falo "fracasso" estou me referindo a essa ótica reducionista de quem não tem grana ou status. Embora essa seja uma força presente, eu sinto ao mesmo tempo uma reação a esse movimento que é bastante vibrante. Eu conheci dois influenciadores comunistas com centenas de milhares de seguidores nos últimos tempos, veja só. Isso era impensável anos atrás: alguém que angariasse uma audiência que abraçasse ideias comunistas, completamente avessas ao que se consome massivamente. Então, acho que o jogo é desigual, mas está longe de estar perdido.
Resenhando.com - O que o levou a escolher a profissão de advogado e o universo das fusões e aquisições como palco para essa odisseia de excessos e derrotas? Há um pouco de autobiografia ali ou é uma crítica a um mundo que você observa de fora?
Pedro Guerra - Na verdade, eu tinha três ambientes que eu poderia usar como pano de fundo para a odisseia do Nilo: uma agência de publicidade, um escritório de advocacia e um banco de investimentos - são três profissões comumente associadas a essa ambição desmedida de que eu queria falar no meu romance. Embora eu seja publicitário, eu já tinha criado um protagonista da minha área no meu primeiro livro “Avenida Molotov”, de modo que fiquei com apenas duas opções restantes. A preferência pelo campo do direito se deveu apenas ao fato de que eu tinha muitos amigos advogados que poderiam ser fonte mais próxima de pesquisa.
Resenhando.com - O seu romance mergulha em temas como o uso indiscriminado de modafinila e o culto à performance máxima. Na sua visão, estamos todos nos tornando zumbis hiperprodutivos dispostos a sacrificar a saúde pela aparência do sucesso?
Pedro Guerra - O capitalismo nos empurrou pra isso, o capitalismo tardio é o paroxismo disso. Eu estava lendo o ensaio “A Sociedade do Cansaço”, do Byung Chul Han, que fala justamente do regime de escravidão a que nos submetemos por vontade própria quando estava pensando em fazer o romance. Ele foi o empurrãozinho que faltava.
Resenhando.com - Nilo migra da rigidez dos escritórios para o palco do stand-up - uma transição que parece simbolizar uma tentativa de ressignificação da vida. O humor, para você, é uma válvula de escape, uma arma de resistência, ou uma nova prisão para o protagonista?
Pedro Guerra - Uma válvula de escape e uma arma de resistência com certeza, embora até hoje dois anos depois de ter escrito o livro ainda não saiba se o Nilo tenha seguido pelo caminho que ele apontava ou não.
Resenhando.com - A narrativa em primeira pessoa expõe a fragilidade e a autoironia do protagonista. Quais são os riscos e os ganhos para um autor ao se entregar tanto à voz de um personagem tão corrosivo e moralmente ambíguo?
Pedro Guerra - O risco maior é o escritor se policiar, acho. Como se o protagonista fosse uma representação dele mesmo. O ganho é poder vivenciar a vitória ou a debacle do seu protagonista de pertinho. Acredito que consegui não me censurar ou me cercear e testemunhar os percalços do Nilo de camarote.
Resenhando.com - “O Maior Ser Humano Vivo” parece ironizar a própria ideia de grandeza e sucesso. Como você lida com o paradoxo de criar um anti-herói que é ao mesmo tempo amoral, generoso e destituído de preconceitos?
Pedro Guerra - Uma das minhas primeiras leitoras me mandou uma mensagem dizendo que odiou Nilo, o protagonista. Eu ri: boa parte dele foi baseada em mim. Ele reagia aos estímulos do jeito que eu imagino que eu reagiria. É óbvio que a personalidade do Nilo é apenas uma parte da minha personalidade, mas o fato é que grande parte dele eu retirei de mim mesmo. Essa facilidade de abraçar a minha parte amoral e, ao mesmo tempo generosa, é algo que eu gosto muito como pessoa e como escritor. Eu sou o que sou, nós somos o que somos. Embora eu goste de ser uma boa pessoa é importante saber que também não sou tão boa pessoa assim e tenho pensamentos não tão engrandecedores.
Resenhando.com - A linguagem iconoclasta e ágil do livro não dá trégua ao leitor. Você vê essa “velocidade narrativa” como um reflexo do ritmo frenético da vida moderna? E isso já foi um desafio na hora de construir o texto?
Pedro Guerra - É algo que eu fui ensinado e aprendi a ser. Sou publicitário e tenho que criar diariamente mensagens sedutoras em 30 segundos. Os meus diálogos são muito rápidos, são "raquetadas". Também sou filho da televisão dos anos 80 e do cinema americano, especialmente o cinema independente. Difícil fugir desse poder gravitacional embora tendo o José Saramago, por exemplo, com seus parágrafos de páginas e páginas sem ponto final, como escritor preferido.
Resenhando.com - Em meio à São Paulo do século XXI, seu protagonista convive com personagens que trazem referências fortes, do dublê traficante ao advogado brilhante. Como você construiu essa galeria de “Faria Limers” para mostrar diferentes faces da cidade e da sociedade?
Pedro Guerra - Gosto de pensar que, mais do que escritor, eu sou criador de personagens. O que talvez pode ser uma mentira porque eu também adoro colar palavras umas atrás das outras. Juntando esses dois conceitos, acho que os personagens no fundo são o que me fazem juntar as palavras. Para mim é muito enriquecedor pôr no mesmo círculo um advogado destrambelhado, um garçom-traficante, um sérvio chamado Zé Preto, um bando de suingueiros e um milionário desmoralizado com suas idiossincrasias, glórias e fracasso... Isso tudo me dá oportunidade de falar sobre aspectos muito variados do ser humano
Resenhando.com - Se “O Maior Ser Humano Vivo” fosse um stand-up, qual seria a piada que você escolheria para resumir a odisseia do Nilo - e, de quebra, lançar um olhar crítico sobre o Brasil atual?
Pedro Guerra - De que vale ter um Patek Philipe no pulso e uma tornozeleira eletrônica?