Única atriz brasileira a concorrer ao Oscar, Fernanda Montenegro está de volta aos cinemas com o filme "Boa Sorte", protagonizado por Deborah Secco e dirigido por Carolina Jabor.
Nascida no Rio de Janeiro, em 1929, ela começou a trabalhar aos 15 anos, na rádio MEC, e ao longo de 70 anos de carreira se estabeleceu como uma das maiores atrizes do país, com atuações em teatro, cinema e televisão.
Concorreu ao Oscar, pelo filme Central do Brasil, de 1998. Pelo mesmo filme, ganhou o Urso de Prata de interpretação feminina no Festival de Berlim e foi indicada ao Globo de Ouro. Pelo telefilme "Doce de Mãe" (2012), de Jorge Furtado e Ana Luiza Azevedo, ganhou o troféu Emmy Internacional. Entre seus trabalhos no cinema, destacam-se "A Falecida" (1965) e "Eles Não Usam Black Tie" (1981), de Leon Hirszman (1965), "Tudo Bem", de Arnaldo Jabor (1978), "Casa de Areia", de Andrucha Waddington (2005), "O Amor nos Tempos do Cólera", de Mike Newell (2007), e "Infância", de Domingos Oliveira (2014).
Essa participação no filme da Carolina foi um encontro muito comovente, porque já tinha trabalhado com o pai dela e havia sido uma experiência muito marcante. Não que você precise ter um pai ou uma mãe de referência – mas, muitas vezes, a herança também é boa, e acho que é o caso, aqui. E a personagem da avó, embora não seja um papel grande, é muito rica. Ela é o que sobrou da geração libertária, audaciosa e descompromissada com toda uma estrutura burguesa dos anos 70. E tem essa realidade, a vida é assim, a vida é o que é. A personagem é cheia de nuances, assim como acho também que é cheia de nuances e riquezas toda a história escrita pelo Jorge Furtado. O que posso falar é que meu pequeno lugar no filme foi uma grande oportunidade de trabalhar com gente muito talentosa. Carolina tinha total consciência do que ela queria, uma calma espantosa para uma jovem que estava fazendo seu primeiro filme. E ainda estava no meio de uma gestação. Nenhuma histeria, nenhuma dificuldade de se expressar, muito amorosa, muito delicada, muito tranquila. Sinal de que ela estava muito segura do que ela queria da história dela, do filme dela e dos atores.. Ao mesmo tempo, muita sensibilidade, muita atenção amorosa para cada momento dessa filmagem e o meu papel dentro da história. Isso é muito bom, porque a equipe toda fica tranquila. Ninguém trabalha no estertor, na neurose.
O filme é inspirado em uma história de Jorge Furtado, que também assina o roteiro. Recentemente, a senhora trabalhou na série “Doce de Mãe”, criada pela Casa de Cinema de Porto Alegre, a produtora de Jorge. Como é trabalhar com ele?
Mais uma vez, os deuses me puseram no caminho da coisa boa, do melhor que se possa esperar do nosso país em matéria de roteirista, em matéria de intelectual. Jorge não é metido a besta. É um homem que produz, baseado numa cultura ampla e sólida. A sensibilização dele não é de capa de livro. E há o grupo dele, muito interessante. Acho que é fato raro no Brasil um grupo de trabalho, há tantos anos em Porto Alegre, com todas as pretensas dificuldades que a gente acha que devem ser instransponíveis para quem está fora do eixo Rio-São Paulo. Não, eles vão lá, lutam, e fazem suas coisas com imenso talento. “Doce de Mãe” veio justamente junto com o filme da Carol, e quando você vê o roteiro e as outras coisas que ele faz, são filmes arrebatadores, de uma singeleza e de uma objetividade únicas. Alguns dos nossos roteiristas e também diretores se debruçam muito sobre a classe menos favorecida, e muitas vezes trabalham na culpa social de pertencer a uma burguesia, às vezes a uma alta burguesia – o que também não quer dizer que não façam filmes extraordinários. Mas, no caso do Jorge, isso é diferente.
O filme lida com temas delicados, como a questão das drogas. O que a senhora acha da abordagem?
Isso é característica da dialética na qual o Jorge trabalha. Sem doutrinar – que às vezes outro perigo que corremos no cinema brasileiro –, ele fala disso: todos nós somos viciados em alguma coisa. Então, antes de condenarmos, é preciso passar por si mesmo. Acho que isso é um pouco também a personagem da avó. Ela puxa seu fumo, ela colabora com a ração de drogas da neta. Porque a farmácia está aí para te viciar em qualquer coisa. Pode ser até uma aspirina. Mas isso, no filme, é feito com muita inteligência, sem dogmatismo, no fluxo mesmo do sentimento da cena. Não é um “agora vou falar disso, fazer um discurso sobre isso...”. É mais ou menos assim: antes de se posicionar contra ou a favor, vamos ver quem a gente é.
Como foi contracenar com os protagonistas, Deborah Secco e João Pedro Zappa?
Tive cenas com os dois, e foram muito ricas. Acho que a Deborah está em busca de uma outra carreira para ela, e quando falo carreira não é glória. Ela quer se posicionar como uma atriz conceituada e luta para isso, se entrega. Só fiz uma cena com ela, que estava muito integrada, imbuída da personagem. Fiz mais duas cenas com o João Pedro, e como é bom, nos dias de hoje, você encontrar um jovem ator totalmente destituído dos espírito dos meninos da “Malhação”. É tão comovente ver alguém não contaminado pelo músculo, pela dentadura extraordinária – embora ele tenha uma boa dentadura. Não é aquele (contra o qual não tenho nada, veja bem...) que pensa assim: “se não der certo aqui, vou ser modelo”.
Como a senhora espera que o filme seja recebido?
A minha geração teve como um de seus paradigmas Jean Vilar, que era ator e também um extraordinário diretor francês, ligado a uma visão de teatro popular. Todos nós éramos assim, sonhávamos ir para as praças, para as ruas, interpretar os clássicos para o povo. Ele veio ao Brasil, e nessa época a gente estava em São Paulo, e deu uma palestra no Teatro de Arena, que era pequeno, uns 120 lugares. E todos nós fomos para lá, gente de teatro, gente que não era de teatro... Era um referencial na nossa história de gente de teatro. E todo mundo esperava que, como bom francês, ele fosse fazer dissertações antológicas. Da plateia saiu essa pergunta: “Onde o senhor coloca o sucesso – num sentido maior – de uma encenação?”. Ele olhou e disse assim: “Na distribuição”. E parou. A gente esperava que ele fosse em
frente, mas não. Houve uma risada, pelo desencanto e pela maneira que ele sintetizou a coisa. Então eu repetiria o Jean Vilar. Eu diria que, se você faz uma distribuição certa, 80% do problema estão resolvidos. Tem que ter a distribuição certa, e isso ficou para sempre na minha vida. Isso ficou na minha cabeça também de produtora de teatro. Achar as pessoas certas. E acho que a Carol, com seu instinto de cineasta, achou as pessoas certas. E tenho certeza de que vai ser um sucesso.
Um dos temas do filme é a incomunicabilidade, muitas vezes entre pessoas de uma mesma família. Como a senhora vê essa questão?
Penso que estamos vivendo esse tempo da ciência e da tecnologia, mas também ainda estamos no tempo do humanismo. Os valores não vão sumir, mas vão sofrer uma transformação profunda. O estado no qual estamos hoje é esse intermezzo... Como administrar toda essa invasão tecnológica, de internet, telefones, tanta solicitação, todas essas máquinas de propaganda ao nosso redor? Há um achatamento, uma certa dispersão, um sentimento mais apurado. A personagem da avó também fala disso. Ela também pensa que através da química pode resolver um problema existencial. Estamos vivendo essa geração que está agarrada ainda a outro posicionamento existencial, do tamanho do seu corpo, mas agora tem um
botão que põe você em Marte... Eu não sei. Já tentei até, mas não me aproximei ainda tanto dos botões. Acho que essa temática também é bastante discutida no filme, muito bem colocada pelo Jorge Furtado e bem resolvida pela Carol – que é a descoberta de que eu posso ainda me comunicar com quem está perto de mim. A necessidade do jovem de ter um olho sobre ele.
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